A revelação de Clodo 2

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Certo dia, fui até uma garage sale em busca de um móvel menos caro. Não encontrei o que queria, mas, lá pelas tantas, divisei uma caixa apinhada de CDs em liquidação por R$1. Garimpei várias preciosidades e outras coletâneas a serem avaliadas. Entre elas, figurava um álbum duplo de Fagner. Ele cantou duas músicas que me comoveram: Monte Castelo, de Renato Russo, e Revelação, de Clodo e Clésio Ferreira.

Sempre vi os irmãos piauienses Ferreira (Clodo, Climério e Clésio) na condição de índios yanomamis, índios da festa, do entendimento e da paz. Pareciam trigêmeos, mas não eram; na verdade, eles eram e são muito diferentes. Clésio fazia lindas melodias. Climério tinha tudo para ser roqueiro, mas é muito regional. Clodo herdou muito a atmosfera da Jovem Guarda, dos bailinhos de Taguatinga e do rock da década de 1970.

Revelação tem um pouco desse clima. É como se fosse uma canção da Jovem Guarda, mas impregnada de dramaticidade, que ganhou ainda mais voltagem na voz rascante de Fagner: “Quando a gente pensa/de toda maneira/dele se guardar/sentimento ilhado/morto e amordaçado/volta a incomodar”.

Gosto das histórias da criação das canções, pois elas envolvem intuições, acontecimentos imprevisíveis e lances do acaso. Os deuses sempre jogam seus dados, principalmente no campo da música. O implacável Ruy Godinho registrou o depoimento de Clodo sobre a gênese de Revelação. Acompanhemos o relato.

Clésio havia composto a melodia para o poema de uma moça não identificada. O fato é que a versão não prosperou, sem que tenha explicado a razão a Clodo. A canção ficou sem letra. Mas, de repente, aconteceu uma daquelas coincidências misteriosas. Clodo leu o poema Memória, de Carlos Drummond de Andrade: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração./Nada pode o olvido/contra o sem sentido/apelo do não./As coisas tangíveis/tornam-se insensíveis/à palma da mão./Mas as coisas findas,/muito mais que lindas,/essas ficarão.”

Se encaixou, perfeitamente, na melodia de Clésio. A parceria era Clésio e Carlos Drummond. Eles cantaram Revelação com os versos do poeta de Itabira durante um ano. Os versos tinham o tamanho da melodia. Mas, de repente, outra surpresa. Alguém tinha musicado os mesmos versos de Drummond com outra melodia. Revelação ficou novamente sem letra.

Então, Clodo resolveu fazer a letra, pessoal e intransferível, para Revelação. Mas ele estabeleceu um diálogo com os versos drummondianos. A letra de Drummond fala que as coisas findas ficarão. Clodo diz que elas voltam para incomodar. No primeiro disco do trio de irmãos, São Piauí, por alguma razão desconhecida, eles não a incluíram. Apesar disso, no show de lançamento, Clodo cantou Revelação.

Fagner estava na plateia e, logo que a ouviu, ficou fascinado e pediu a Clodo que reservasse para ele: “Vocês vão ficar velhos e essa canção continuará a fazer sucesso”, vaticinou Fagner. E estava certo. A canção teve inúmeras versões, até em pagode, mas a melhor é a de Fagner. Ele captou a alma de Revelação e a verteu na voz.

Mas Clodo, Climério e Clésio não são compositores de uma só canção. Eles têm mais de 100 músicas gravadas. Brasília pode ser absurda, mas tem um ouvido musical que não é normal. Ainda estamos sob o impacto da morte de Clodo. Ele deixa um precioso legado musical. Cantar é quase como não morrer.

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