Severino Francisco
As contínuas polêmicas sobre etarismo desencadeadas nas redes sociais me reacenderam a lembrança de uma memorável entrevista de Nelson Rodrigues concedida a Otto Lara Resende. Os dois eram muito amigos, mais Nelson de Otto do que Otto de Nelson. Existiam dois Ottos: o brincalhão, sempre com uma blague na ponta da língua; e o trágico dos magros, mas densos e dramáticos contos de ficção.
Passaram para a posteridade uma série de narrativas hilárias, não se sabe até que ponto verídicas, mas sempre saborosas. Não é para menos, Nelson Rodrigues inventava e incrementava situações para lá de ficcionais envolvendo o amigo. O nosso profeta do óbvio batizou uma de suas peças com o desconcertante título de Otto Lara Resende ou bonitinha mas ordinária. Amigos do Otto ficaram indignados.
Carlos Drummond de Andrade foi o mais veemente, ligou para o Otto e exigiu: “Reaja!” Pressionado, Nelson ensaiou uma reparação, mas a emenda saiu pior do que o soneto. Segundo o nosso Freud de Madureira, Otto adorou a homenagem e, inclusive, se colocou à disposição para colaborar com o título luminoso da peça em um teatro no centro do Rio de Janeiro. De olho rútilo e lábios trêmulos, teria proposto: “Eu pago o neon, eu pago o neon”.
Se, porventura, o Otto faturasse o Nobel de Literatura, atravessaria o Oceano Atlântico a nado para receber a láurea e, segundo Nelson, Carlos Drummond exigiria: “Reaja, reaja!” Otto era um brincalhão impagável no cotidiano e, quando não queria ser incomodado, respondia ao interlocutor dessa maneira ao telefone: “Não estou!”. E, pimba, desligava a ligação.
Consta a versão de que, para sobreviver, trabalhava como editorialista de dois jornais concorrentes. De manhã, escrevia um artigo espicaçando determinado tema e, à tarde, instalado em outro jornal, refutava tudo e polemizava consigo mesmo. O próprio Otto gostava de propagar a blague de que o chefe da redação pediu a um editorialista para escrever um artigo sobre Jesus Cristo. Ao que o escriba teria respondido: “Contra ou a favor?”
Otto fazia, ao vivo, o programa de entrevista Painel, na Rede Globo, e resolveu entrevistar Nelson em agosto de 1977. Um dos melhores momentos é o debate sobre a juventude e a velhice. Nelson afirmava que era o único a defender a velhice como a maior das qualidades. E acrescentava que o jovem só podia ser levado a sério quando envelhecesse. Otto discordou inteiramente e citou os exemplos de Rimbaud, Bethoven, Pascal e Napoleão, brilhantes na juventude.
Nelson treplicou: “Só Rimbaud, só Bethoven, só Pascal, só Napoleão. Eles eram exceções”. Ao que Otto esgrimiu um argumento que julgava definitivo: “Vou invocar um nome para quem você vai se prosternar em reverência, Jesus Cristo, que morreu com 33 anos”. Todavia, Nelson não se rendeu: “Mas o Cristo é o Cristo. Te dou vários anos de meditação para descobrir um Cristo de 15 anos”.
Otto lembrou que Nelson começou a escrever nos jornais quando tinha 13 anos e provocou: “Você era um idiota?” Nelson não se intimidou e respondeu: “Sim, eu era um idiota. Quando tinha 18 anos, eu não sabia sequer dar bom dia a uma mulher. A razão da idade é um embuste hediondo. Existem pulhas, canalhas e imbecis de todas as idades”.