A noite solidária

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Na última sexta-feira, por volta de 20h, eu estava em casa concentrado na leitura de um livro, quando ouvi um som de carro em descida atabalhoada pela via íngreme e o baque pesado de uma batida. Parte de minha família saiu voada rumo ao barulho, enquanto eu fui em busca de um sapato para calçar. Alguns minutos depois, quando pisei na rua, avistei uma cena dramática: mulheres abraçando crianças com gritos de desespero ao lado de uma van tombada e um carro com a lataria amassada.

Nosso condomínio horizontal, situado no Jardim Botânico, fica em um vale, o que impõe ruas muito íngremes, perigosas na descida. Uma van com 18 atletas de Piracicaba, com idades de 8 a 16 anos, que participava de uma competição em Brasília, perdeu o freio, bateu em uma caixa de eletricidade, tombou e atingiu um Honda City estacionado em uma faixa de grama.

Fiquei angustiado porque não vi ninguém da minha família. Mas, logo percebi, que, ao lado de outros moradores do condomínio, eles estavam engajados em tarefas urgentes para retirar as crianças da van.

A mobilização de solidariedade foi instintiva e instantânea. O condomínio adotou, imediatamente, a trupe naquele instante. Vimos naquelas meninas nossas filhas e nossas netas. Rapidamente, os moradores conseguiram abrir a porta traseira e possibilitaram a saída das crianças e dos adultos que as acompanhavam.

Houve momentos de tensão. Uma garota ficou com o braço preso em uma janela do carro tombado. Fiquei apreensivo, pois imaginei que tentariam desvirar, perigosamente, a van sem freio. No entanto, a intenção não era essa. Juntaram as forças e conseguiram deslocar a van para livrar o braço preso da menina e ela pôde deixar o veículo.

Algumas saíram sem ferimentos mais graves, outras deixaram a van com sangue no rosto e a maioria teve ferimentos leves. As mulheres ampararam as meninas. Uma delas solicitou que alguém fizesse uma prece com ela, no que foi atendida.

Quando o Corpo de Bombeiros chegou, todas as meninas haviam saído da van, o único que se encontrava no carro era o motorista, preso entre poltronas e ferragens. Como sempre, eles foram de uma competência, de uma eficiência e de um extremo cuidado. As bombeiras mulheres dispensaram um desvelo especial para as meninas.

Ao fim, o comandante da operação pediu desculpas pela ordem de evacuar a área para que pudessem trabalhar e recebeu como resposta aplausos de todos. Ele agradeceu aos policiais militares que registraram a ocorrência e deram apoio.

Quer dizer, tudo transcorreu com a presença dos representantes do poder público, como deve ser e nem sempre acontece. Nos dias seguintes, vários moradores continuaram dando apoio para a comitiva, que havia alugado uma casa no condomínio. Levaram tortas, bolo e acerola para fazer suco.

No sábado, recebemos a notícia de que todas haviam recebido alta no hospital, com exceção de uma menina, que seria submetida a uma cirurgia no braço. No domingo, cinco moradores se mobilizaram para transportar as garotas até o ônibus que as levaria de volta a Piracicaba.

O que começou como uma noite de haloween terminou como uma noite ou um fim de semana da solidariedade. A solidariedade deve ter amenizado o choque do acidente. Na despedida, uma das coordenadoras disse: “Nem sei como agradecer. Todos vocês do condomínio foram maravilhosos. A gente ouve tanto falar que Brasília só tem político corrupto e voltaremos para Piracicaba com outra imagem da cidade”.

Ainda estamos lembrando de lances do acontecimento em nosso condomínio ao circular de carro pela cidade. De repente, alguém sugeriu que ouvíssemos O Rio de Piracicaba, antiga e bela canção interpretada por Tião Carreiro e Pardinho. “O Rio de Piracicaba/Vai jogar água pra fora/Quando chegar a água/Dos olhos de alguém que chora”.

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