Severino Francisco
No fim de semana, me envolvi novamente na velha pendenga se Papai Noel é uma figura nociva porque seria, supostamente, um agente do consumismo desvairado e da crueldade contra as crianças pobres. Eu acreditei nesta versão, mas, como já disse, depois de ter filhos e netos, e de ver como as crianças, ricas e pobres, adoram o Natal, mudei completamente de ideia.
É claro que as desigualdades sociais se escancaram neste período. Mas os valores e o ânimo que o Natal suscita transcendem essas realidades. Em casa, recolhemos muitos brinquedos esquecidos e levamos a um projeto social, com certo sentimento de culpa. Mas o rapaz que recebeu a nossa carga me dissuadiu: “Que nada, você não imagina a alegria que um brinquedo desses pode provocar em uma criança pobre.”
Eu fiquei tocado pelo trabalho dessas pessoas voluntárias, que abandonam o conforto de suas casas e saem para ajudar os desvalidos. Não resolve todos os problemas, mas transmite algum alento e esperança para os que estão desesperançados ou desesperados.
O Natal é uma utopia de afeto, de solidariedade, de harmonia, de esperança, de generosidade, de celebração e de bom ânimo. Esses são os verdadeiros valores do cristianismo. A utopia está envolvida nos interesses do consumo, mas é reavivada durante a festa. Deveria se estender para todos os dias do calendário. Em nome de Jesus, os falsos cristãos propagam valores do ódio. O lema de Cristo era amai-vos uns aos outros, e não armai-vos uns contra os outros.
Na volta, passei em uma feirinha da periferia e levei um susto ao ouvir, vindo de longe, o que me parecia o som de uma música sublime. Ao me aproximar, avistei um coral formado por crianças muito brasileiras, negras, morenas, pardas e brancas, todas vestidas de vermelho, com boinas de Papai Noel, entoando aquela linda canção de Milton Nascimento e Fernando Brandt, que fala de amizade: “Amigo é coisa pra se guardar/com sete chaves dentro do coração/Assim dizia a canção/que na América ouvi/Mas quem cantava chorou ao ver seu amigo partir”.
Interessante é que, a rigor, não seria uma canção tradicionalmente natalina. Mas o grupo cantante a transforma em celebração da festa. Não poderia soar mais apropriada ao Natal:”Mas quem ficou, no pensamento voou/Com seu canto que outro lembrou/E quem voou, no pensamento ficou/Com a lembrança que o outro partiu”.
Com a apropriação amorosa, os brasileirinhos revitalizaram, revivesceram, rejuvenesceram e revestiram a canção de uma nova alma. Ela ficou com o timbre, o sopro e a cara daquelas crianças negras, morenas, pardas e brancas da periferia: “Amigo é coisa para se guardar/No lado esquerdo do peito/Mesmo que o tempo e a distância digam não/Mesmo esquecendo a canção/O que importa é ouvir/A voz que vem do coração”.
Essa versão do coral me reacendeu a fé no poder da arte em tocar no coração. De repente, me veio a certeza fulminante de que, se Milton Nascimento ouvisse aquele coral de crianças candangas da periferia na feirinha, ele choraria as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues. Ele não resistiria ao ouvir a música dos anjos.
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