Severino Francisco
Monte Castelo é a minha canção preferida da Legião Urbana. É algo que chega mais perto de uma música dos anjos. Eu sempre a escuto como se fizesse uma prece. Quando a ouvi, pela primeira vez, tive a vaga impressão de que as palavras cantadas por Renato Russo me eram familiares. E, de fato, logo, mais que a vaga impressão, me dei conta que conhecia a origem dessa linda canção de uma maneira muito afetiva: a Carta aos Coríntios, de São Paulo, e o Soneto 11 de Camões.
O meu pai era pastor presbiteriano, ir à igreja aos domingos era obrigatório e inescapável. Cresci assistindo a sermões em que a Carta aos Coríntios era uma referência frequente: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como prato que retine. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá. O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha”.
Já o contato com o soneto de Camões vem de outra fonte. Tive a fortuna de ser agraciado com duas mães, ambas extraordinárias. A segunda era uma mulher aristocrática, instintiva e ilustrada. Sempre que conversávamos sobre o temas relacionados ao amor, ela recitava o soneto de Camões: “O amor é fogo que arde sem se ver/É ferida que dói e não se sente/É um contentamento descontente/É dor que desatina sem doer…”
Nem sempre as transposições de linguagem são felizes. Considero frustradas várias tentativas de musicar a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Ficam aquém do original, é melhor ler o poeta e captar a música interna das palavras no papel. Aliás, ao ver um filme sobre Grande Sertão: Veredas, povoado de corridas desabaladas de cavalos, Guimarães Rosa comentou: “Meu livro é épico; fizeram um filme hípico”.
Mas Monte Castelo é uma versão inspirada. E, mais do que uma versão, é uma obra de criação. Ao longo de toda a trajetória, Renato cantou as contradições, os desencontros e os desencantos do amor. No entanto, mesmo quando fala de experiências dramáticas, sente uma nostalgia da pureza. Em Monte Castelo, ele parece pretender falar do amor como utopia factível, ao alcance de cada um.
A canção tem uma estrutura dramática na mixagem entre a Carta aos Corinthos e o soneto camoniano. O texto de São Paulo é uma utopia do amor e fala a língua dos anjos; o de Camões fala a língua dos homens. Porém, Renato não transcreveu simplesmente as palavras para a canção. Ele selecionou, cortou, adaptou, recriou, montou e acrescentou versos: “Ainda que eu falasse a língua dos homens/E falasse a língua dos anjos/Sem amor eu nada seria/ É só o amor, é só o amor/Que conhece o que é a verdade/O amor é bom, não quer o mal/Não sente inveja ou se envaidece.”
Renato ainda inseriu o verso: “Estou acordado/Todos dormem”. E colou o verso ao texto decalcado da Carta aos Corinthos: “Agora vejo em parte/Mas então veremos face a face”. O título Monte Castelo parece, em uma primeira mirada, aleatório ou enigmático. Mas, na verdade, a canção é uma homenagem a um tio de Renato que lutou na Força Expedicionária Brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial, resistindo ao nazismo, na Itália. A canção fala, a um só tempo, do amor universal e do pessoal.
Com a sua voz nervosa, lancinante e dramática, Renato canta com a língua dos homens e a língua dos anjos. É preciso ter chispa para promover uma parceria com São Paulo e Camões e inventar uma música tão sublime. Lembrei de Monte Castelo neste momento em que a estupidez da guerra nos ameaça novamente. É música em feitio de oração. É só o amor.