Severino Francisco
A servidora pública Patrícia Nogueira trafegava de bicicleta, vestida de short e com biquíni na parte de cima, pela orla do Lago Paranoá, no Pontão do Lago Sul, quando foi abordada por um segurança, que pediu que vestisse a camiseta. Ele advertiu que ela não poderia usar aquela roupa no local. Reparem: ela não havia ido a missa, a uma sessão do plenário da CPI da Covid no Senado ou a uma solenidade no Itamaraty.
Escolheu aquele traje para pedalar, tomar sol e fazer exercício na ciclovia da orla do Pontão. Queria apenas espairecer e preservar a saúde durante o sufoco da pandemia. Além disso, seguia o protocolo da saúde, usava máscara. A mulher da bicicleta ficou tão indignada que resolveu filmar a discussão com o vigia. É preciso registrar que o segurança foi educado. E, de sua parte, Patrícia agiu de uma maneira elegantemente e delicadamente firme. Sob o impacto do absurdo, ela quis saber o motivo da restrição. O guarda argumentou que o traje era inadequado para o local.
No calor do debate, eis que ela vislumbrou no calçadão a aproximação de um argumento inesperado, um argumento em carne e osso, que valia por mil palavras. Apontou a câmera do celular para um venerável senhor, que caminhava na direção dos litigantes, vestido de calção e sem camiseta, para receber o sol matinal diretamente na pele. “Eu não posso de short e a parte de cima do biquíni, mas homem sem camisa pode, é isso?”
Confrontado, o vigilante disse que homem sem camisa podia, desde que não estivesse em traje de banho. Diante do fato inapelável, o segurança ficou na situação daquele personagem de Nelson Rodrigues, que se defendeu com a alegação negacionista: “Pior para os fatos”. Consultada, a empresa de segurança afirmou que a abordagem do vigilante foi um equívoco e ele recebeu uma advertência.
Patrícia alertou que o machismo estrutural se manifesta nas situações mais triviais do cotidiano. E ela está certa. Por uma coincidência, o meu filho João estava lendo a coletânea de crônicas A moça na grama, de Carlos Drummond de Andrade e me mostrou: parece que a cena foi retirada do livro.
Na crônica que dá título ao livro, Drummond narra a história de uma moça elegante que resolve deitar-se na grama em um bairro do Rio de Janeiro: “Não tinha nada de exibicionista, era a própria descontração, o encontro do corpo com a tranquilidade, fruída em estado de pureza. Quem quisesse reparar, reparasse; não estava ligando nem desafiando costumes nem nada”.
Mas, logo chega um guarda, que começa a interpelá-la e ordenar que se levante. Ela observa que há um homem deitado e o policial não o incomodou: “Aquele é diferente, a senhora não percebe?” “Percebo que é homem, e daí? Homem pode, mulher não?” “Bem, poder ninguém pode, é proibido, mas sendo homem, além de mindingo…” “A senhora se levante, em nome da lei” “Espere aí. Ou todos se levantam ou eu continuo deitada em nome da lei da igualdade”
“Essa lei eu não conheço, dona. Essa que a senhora fala, eu acho que não pegou”. “Mas deve pegar. É preciso que pegue, mais cedo ou mais tarde”. “É muito difícil lidar com as mulheres, elas têm resposta para tudo”. Diante do impasse e receoso de uma cena de escândalo na rua, o policial acata a sugestão da mulher para que finja não vê-la deitada na grama.
Como se vê, algumas vezes a vida imita uma crônica de Drummond, escrita há mais de 40 anos. Parece que pouca coisa mudou nesse meio tempo. Mas mudou e está mudando com a atitude das mulheres.