A morte de Braga

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Crédito: Rubem Braga/Editora Globo/Reprodução. Autorretrato de Rubem Braga, do livro Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar, de Marco Antonio de Carvalho.

Severino Francisco

Quando o amigo Vinicius de Moraes morreu, Rubem Braga lembrou-se de que achou estranho ler os versos do livro Hora íntima: “Quem pagará o enterro e as flores/Se eu morrer de amores?” Porque naquele tempo nenhum dos dois acreditava que fosse morrer. Os versos foram escritos em tom de brincadeira, e Braga continuou achando que a morte do amigo era piada: “Eu conheço Vinicius há muito tempo, ele não morre, não, ele nunca morre!”.

Ao receber a notícia de que estava com câncer na laringe e sentir muito próxima a presença e a iminência da morte, Braga baqueou. Mas, com pragmatismo e realismo de capricorniano, logo em seguida decidiu tomar as providências cabíveis. Queria ser cremado e, dissimuladamente, viajou até São Paulo para encomendar o serviço a uma empresa especializada. A certa altura, a diligente funcionária da firma indagou: “Mas quem é o cadáver?” Ao que Braga replicou: “O cadáver sou eu”.

O capítulo derradeiro de Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar, de Marco Antonio Carvalho, traz o relato pungente dos últimos dias do cronista capixaba. Acompanhemos a narrativa. Depois de estar ciente de sua condição, Braga só queria morrer com dignidade, sem se submeter ao definhamento humilhante imposto pela doença: “Quero arranjar um jeito rápido e indolor de acabar com isso”, confidenciou a um amigo, o jornalista e deputado Roberto D’Ávila: “Se eu sentir dor, vou para a Holanda”, país onde a eutanásia era legal.

A par das providências pragmáticas, ele tomava as sentimentais e líricas para com os amigos e os familiares. Doou parte dos seus livros ao crítico de arte cachoeirense Paulo Herkenhoff, em troca de um robalo pescado no Rio Itapemirim, que a irmã Yeda preparou com camarão de Marataízes. Despediu-se do sobrinho Álvaro e da mulher, Carolina, oferecendo uma goiaba do quintal de sua cobertura em Ipanema a cada um deles.

Ao filho Roberto, redigiu o seguinte bilhete: “Após a cremação do meu corpo, providencie para que as cinzas sejam lançadas no Rio Itapemirim, de maneira discreta, sem cortejo e sem quaisquer cerimônias, por pouquíssimas pessoas da família e, de preferência, no local que só a sua tia Gracinha, a minha irmã Anna Graça, tenha conhecimento. Nem o dia deve ser divulgado, tudo isso para evitar ferir suscetibilidades de pessoas religiosas, amigos e parentes”.

E tudo foi feito segundo as ordens expressas do desconcertantemente bravo e delicado caboclo, que, ao sentir o hálito de gelo da morte, a detestou e compôs os seguintes votos e orações: “Que o mistério que existe em toda morte fosse na minha dignificado pela simplicidade. E meu velório fosse assim como uma festinha de despedida, onde mesmo as pessoas que ficassem com os olhos vermelhos pudessem rir sem remorso. Que tudo o que disse por tédio ou afetação pudesse ser esquecido e minha lição obscura fosse uma lição de insaciável liberdade e gosto de viver”.

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