Severino Francisco
Em meio às ameaças de extinção da Fundação de Teatro que Dulcina de Moraes criou em Brasília, encontrei um precioso depoimento de Fernanda Montenegro em um livro magrinho, mas denso, da coleção Aplauso (Ed. Imprensa Oficial de São Paulo). Na obra, Fernanda reitera a opinião expressa inúmeras vezes de que Dulcina foi a personalidade mais importante do teatro brasileiro do século 20 e, realmente, a nossa primeira atriz moderna.
O depoimento de Fernanda ressalta os múltiplos talentos de Dulcina, todos mobilizados em favor do teatro: a atriz, a diretora, a empresária, a empreendedora, a líder em defesa dos direitos da classe e a visionária apaixonada pela educação.
Acompanhemos a voz de Fernanda: “Dulcina de Moraes, para mim, como personalidade de teatro, é a pessoa que mais fez por nós no século que passou. Ela desde cedo fez a sua companhia, no início só de peças nacionais. Ela abrasileirou a prosódia nos palcos do Brasil, porque o sotaque nobre era português. Ela tirou o ponto. Construiu cenários. Tirou os telões pintados.”
Com raro poder de síntese, Fernanda continua enumerando as qualidades e as realizações de Dulcina, uma mulher elétrica, carismática e divertida, a um só tempo, utópica e pragmática: “Teve um repertório extremamente qualificado. Ela acabou com a carteirinha de prostituta das atrizes e conseguiu o dia de descanso obrigatório. Ela patrocinava inúmeros concursos de peças para descobrir atores e autores. Muitos autores e atores nasceram aí. Dirigia muito e dirigia bem. “
Fernanda chama a atenção para um aspecto pouco mencionado quando se fala em Dulcina: as inovações na iluminação das peças teatrais: “Uma coisa que Dulcina também introduziu, antes de Ziembinski, foi uma iluminação dramática, não aquela luz geral; havia uma sofisticação de iluminação nos espetáculos de Dulcina.”
Quando resolveu fundar uma escola de teatro no Rio de Janeiro, Dulcina chamou o que havia de melhor em termos de professores, para o corpo docente da sua Fundação no Rio de Janeiro, lembra Fernanda. Depois, veio para Brasília para criar a sua Escola de Artes: “E morreu muito velhinha e muito pobrezinha, sem nada, absolutamente nada. E o que é mais grave: esquecida. Uma mulher da importância dela”.
Com todas as dificuldades, aos trancos e barrancos, a Faculdade Dulcina formou centenas de artistas e arte-educadores. É um legado vivo e nada desprezível. O cancelamento do leilão que liquidaria o projeto de Dulcina para o pagamento de dívidas trabalhistas foi uma vitória precária, mas importante da dignidade de Brasília, graças a mobilização dos jovens, dos amigos e da imprensa. Apesar de dever mais de 20 milhões no total, o projeto de Dulcina ainda tem salvação.
É preciso conseguir uma ampla articulação, envolvendo inclusive o ministério da Cultura, de Margareth Menezes. O BRB investe R$ 52 milhões por ano no Flamengo, clube do Rio de Janeiro. Menos da metade resolveria os problemas da Faculdade e do teatro Dulcina. O Museu do Ipiranga, em São Paulo, recebeu recursos de 36 empresas para o projeto de modernização e reformas, com recursos de R$ 235 milhões. Por que o projeto do Dulcina na capital do país não pode receber R$ 20 milhões?