Severino Francisco
Sou de uma geração imediatamente anterior à de Gilberto Gil. Confesso que me sentia humilhado e, ao mesmo tempo, provocado pela inteligência daquela constelação de pessoas brilhantes, que incluía, entre outros, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Tom Zé, Chico Buarque, Gal Costa, Wally Salomão e Torquato Neto.
E, na verdade, essa convergiu com duas gerações anteriores do modernismo, nos proporcionando o privilégio de sermos contemporâneos de Carlos Drummond, João Cabral, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre e Rubem Braga. É o momento mais alto da inteligência brasileira. Mesmo assim, a geração de Gil e cia brilhou intensamente.
Gil incorporou o ritmo do baião e da capoeira à batida do violão. Abrasileirou e baianizou o rock e o reggae. É o mais espiritualizado dos nossos compositores. Compôs canções modernas e eternas. Quando voltou do exílio para Salvador, em 1972, encontrou o bloco Filhos de Gandhi reduzido a minguados 40 integrantes.
Resolveu desfilar e compor a canção Filhos de Gandhi, que provocou o renascimento e a transformação da agremiação no maior bloco de afoxé da Bahia, alcançando 10 mil participantes. A sua canção foi o mistério que bateu no coração. Sou Corinthians e Filhos de Gandhi, o bloco que celebra o sagrado e a paz em pleno carnaval.
Gil é um dos poucos artistas que pode sentar-se com um violão em um tamborete e tocar em qualquer lugar do mundo. Ele é, antes de tudo, uma pessoa elegante, espiritualmente elegante.
Por isso, não posso permanecer calado ante o ataque covarde de um manifestante contra Gilberto Gil durante a Copa do Catar. O menestrel baiano foi xingado por causa das mentiras bombardeadas pelo zap sobre a Lei Rouanet. Em primeiro lugar, o cidadão que acusou desconhece que não foi Gil que criou essa política pública para a cultura.
Os músicos sertanejos vivem acusando, sem provas, a vários artistas de se beneficiarem, de maneira ilícita, da Lei Rouanet. Repetem a leviandade mil vezes na esperança de que ela se transforme em verdade. Mas uma simples mirada nos portais de transparência dos municípios revelou que os sertanejos recebem cachês de mais de R$600 mil pelos shows que fazem em cidadezinhas constituídas, algumas vezes, por uma maioria de beneficiários do Auxílio Brasil.
A tão atacada Lei Rouanet tem regras explícitas sobre a captação das verbas, critérios de seleção, limite de cachê para shows solo (era de R$ 45 mil e foi reduzido para R$ 3 mil no governo Bolsonaro) e prestação de contas rigorosa. Se alguém cometeu alguma irregularidade, que seja responsabilizado e penalizado. Não é isso que parece ocorrer com os grupos sertanejos.
Só para se ter uma ideia, o maior cachê do projeto Virada São Paulo é de R$ 300 mil. Em micaretas e festas de São João, o valor pode chegar a R$ 600 mil. Escolas de samba do grupo especial no Rio de Janeiro receberam 1,5 milhão para a escola inteira no carnaval de 2022. Não há nenhuma razão, a não ser o fanatismo, para a achincalhar Gil.
Gil cantou a paz como ninguém; cantou a paz, não apenas como estado de não violência, mas também como instante de iluminação: “A paz invadiu o meu coração/De repente me encheu de paz/Como se o vento de um tufão/Arrancasse meus pés do chão.” Como alguém já disse: ele é o nosso buda baiano. Merece a nossa reverência e não a nossa insciência. Está no Catar honrando a camisa amarelinha, restituindo a alma de brasilidade surrupiada do nosso manto sagrado, restaurando a dignidade do Brasil contra o anti-Brasil.
Só a ignorância-ostentação pode explicar o ataque estúpido a Gil. Essa abordagem das pessoas públicas no restaurante, no estádio, no cinema ou no teatro é totalmente incivilizada e descabida. Nelson Rodrigues, escreveu uma frase que ganha cada vez mais uma atualidade dramática.
Segundo o nosso profeta do óbvio, tivemos um gênio da economia, Marx. Tivemos um grande pensador da sexualidade, Freud. Mas falta um gênio para pensar a burrice, pois ela influi muito mais em nossa vida do que a economia e o sexo.