A estátua do padre Vieira

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Severino Francisco

 

Fiquei triste quando vi, na tevê, a estátua do padre Antonio Vieira, com indígenas agarrados em sua batina, ser pichada por manifestantes contra o racismo em Lisboa. Sou inteiramente solidário aos movimentos antirracistas, eles constituem um dos acontecimentos mais alentadores do nosso tempo.

 

No entanto, tenho a impressão de que vandalizar monumentos não resolverá em nada o problema do racismo e, além disso, contribuirá para destruir a memória. O melhor antídoto é conhecer a história e estabelecer uma relação crítica com os seus personagens.

 

Se defendeu a liberdade dos índios de maneira contundente, a postura de Vieira em relação aos negros escravizados é contraditória. Ele dedicou vários sermões ao tema. No célebre Sermão vigésimo do Rosário, pregado diretamente aos escravos de uma irmandade, o sentimento humanista e cristão de Vieira o leva comparar o martírio dos negros ao que Cristo padeceu na cruz: “Em seu engenho sois imitadores de Cristo crucificado porque padeceis de um mundo muito semelhante ao que o mesmo Senhor padeceu na cruz, em toda a sua paixão”.

 

A saga dos escravos torna-se matéria de profunda meditação em outro sermão, o vigésimo sétimo do Rosário: “Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos: um nesta vida, outro na outra”.

 

A perplexidade se transmuta em indignação, em alguns momentos: “Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh, mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os ricos das próprias!” Em outro trecho, indaga: “Quem vos sustenta no Brasil, senão os vossos escravos? Pois se eles são os que vos dão de comer, por que lhes haveis de negar a mesa, que é mais sua que vossa?”

 

No entanto, Vieira faz um estranho contorcionismo retórico e transfere a questão moral da escravidão para o plano celeste. O padecimento da terra seria o preço da salvação no céu: “Que importa porém que os senhores os não admitam à sua mesa, se Deus os convida e regala com a sua?”

E continua: “Mas é particular providência de Deus, e sua (da Mãe do Redentor), que vivais de presente escravos e cativos, para que por meio do mesmo cativeiro temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna.”

 

Com isso, acaba justificando a mercancia dos escravos na terra. Além disso, Vieira se posicionou contra o plano do padre italiano Antonil, que pretendia transformar os mocambos do quilombo de Palmares em aldeamentos, nos quais os negros seriam evangelizados. “Essa mesma liberdade (se concedida) seria a total destruição do Brasil”, escreveu o autor de Os sermões.

 

Vieira gostava de alardear supostas e imaginárias ascendências fidalgas. Mas, na verdade, era mulato, filho de um funcionário do terceiro escalão da Justiça Régia e de uma padeira da ordem franciscana.

 

É um escritor extraordinário e foi alçado por Fernando Pessoa à condição de “imperador da língua portuguesa”. De minha parte, prefiro o Vieira que diz: “A verdadeira fidalguia é a ação; o que fazeis, isso sois, nada mais”.

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