Severino Francisco
Antes da chegada de Sônia Braga à vila Paços de Ferreira, em Portugal, na virada final da década de 1970, as mulheres eram seres meio abstratos para o menino Valter Hugo Mãe, que se tornaria um dos maiores escritores portugueses modernos. Havia um abismo de roupas austeras o separando das mulheres.
Hugo já havia escrito um belo depoimento sobre o impacto dos discos da banda brasiliense Legião Urbana, que atravessou o Oceano Atlântico e eletrizou seu coração adolescente, em Lisboa.
Entretanto, no recém-lançado livro de memórias Contra mim (Biblioteca Azul), ele faz uma evocação surpreendente de outra conexão brasileira: o abalo que representou a presença da série televisiva Gabriela cravo e canela, estrelada por Sônia Braga na sua vida. São textos curtos, mas densos de poesia: “De súbito e certo modo, a 17 de maio de 1977, Sônia Braga inventou a mulher”, escreve Hugo.
E continua: “Aquelas pessoas que víamos com alguma suspeição, admirando sem saber como seriam debaixo das roupas severas, eram afinal de sinuosas curvas, os peitos livres, o lado farto das mães. Comentava-se por toda a parte acerca do perigo que chegava do Brasil.”
Não estamos acostumados a ver as telenovelas como obras revolucionárias. Mas a recepção a uma obra de arte é sempre imprevisível e misteriosa. Sônia Braga, na pele morena de Gabriela, era, simultaneamente, a encarnação da mulher e da liberdade, para Hugo: “Ela era as mulheres do mundo inteiro. Primeira coisa que eu soube do Brasil: ao menos ali, as mulheres existiam todos os dias. Não eram hipóteses aventadas por quem tinha cabelo comprido, voz mais aguda, os dedos finos, sempre confinadas em tarefas de cozinha”.
Ao assistir à telenovela, Valter Hugo mudou a imagem que tinha sobre o Brasil e sobre as mulheres. Sônia Braga revelava que as mulheres poderiam ter um uso diferente. “Elas serviam para si mesmas, sem sequer serem entendidas pelas outras pessoas, sem serem entendidas pelos homens”.
Na Vila existia Marisol, irmã de Hugo, que considerava mais bonita do que Sônia. Talvez ela fosse mais feliz no Brasil, pensava Hugo. “Que desperdício que fosse mais bonita do que a Sônia Braga numa terra coberta de roupas como era a de Paços de Ferreira”.
Mas, além de alterar a visão sobre o Brasil e sobre a mulher, a aparição de Sônia Braga/Gabriela teve, na sequência, um efeito ainda mais arrebatador: a descoberta do mistério do prazer no próprio corpo. Hugo mais sonhava do que via Gabriela. O refrão da famosa trilha da novela ressoou fundo: “Para justificar o que nos era incondicional dizíamos: eu nasci assim. Dava para abordar a naturalidade de muito pecado ou pensamento de perigo”.
As experimentações com o corpo revelariam para Hugo que a espiritualidade poderia ser mais física. Deus não inventaria a natureza e, em seguida, a consideraria errada e a humilharia com o pecado. O corpo também era um território do sagrado: “E erraria jamais por cumprir meu corpo. Meu corpo seguia tão sagrado que ele produzia a própria alegria. Eu pensei. Em cada pessoa Deus deixa o mistério da alegria própria”.
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