Severino Francisco
Uma amiga me enviou uma mensagem de áudio com a voz radiante. Ela não havia acertado na Mega, não tinha sido aprovada no concurso do Senado ou ganhado uma licitação. Estava feliz simplesmente porque o dia amanheceu lindo e a luz brasiliana traz alegria.
Clarice Lispector sentiu em Brasília a radiação de uma luminosidade branca, que exigia sempre estar protegida por óculos escuros. Mas ela só captou uma pequena faceta da luz brasiliense, que tem uma infinidade de nuances a serem exploradas. A luz brasiliana é um dos maiores mistérios e encantos da cidade.
Sem ela, Brasília talvez fosse uma cidade monótona, com a tendência à modulação e à serialização da arquitetura modernista. No entanto, a incidência da luz imprime um colorido, uma variedade de matizes e de perspectivas na cidade que a faz parecer diferente a cada dia. Onde a luz incide, produz beleza.
Os matizes da luz traduzem estados de espírito de uma escala muito sutil: da exaltação épica, passando pela leve melancolia até a epifania mística. As mutações da luz são um manancial permanente de alumbramentos para os brasilienses. É por isso que a gente tem a sensação de que Brasília é uma cidade diáfana, flutuante e evanescente.
Certo dia, ao passar pelo Eixão, o poeta e diplomata Francisco Alvim teve, de repente, uma das inúmeras epifanias possíveis numa cidade em que sempre pode acontecer uma surpresa, provocada pela proximidade com o céu aberto e pela incidência da luz. Sentiu-se tomado de uma felicidade imensa e gratuita. O dia se desdobrava em um jogo de luz e sombra, mas uma sombra luminosa.
O mundo virou um acontecimento em si mesmo. Veio à cabeça de Chico uma evocação dos pintores da luz: Poussin, Turner e Guignard. E também de imagens da literatura, o cinema transcendental da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Lembrou-se da chegada de Dante ao Purgatório, que considera uma maravilha.
Na condição de poeta, Chico é uma espécie de Dalton Trevisan do Lago Norte, a destilar ironias, críticas ácidas e dramas de R$ 1,99 em sua antilira. Como ele mesmo gosta de repetir, Brasília , por fora, é céu e luz; por dentro, é puro Dalton Trevisan.
Mas ele escreveu um belo poema para celebrar esse instante de iluminação brasiliana.”Um céu, que não existe/ou talvez exista na França/de Poussin refratado/nos interiores de Chardin/talvez em Guignard/certamente em Dante/ao chegar à praia do Purgatório/a felicidade que a luz traz/solta, nua neste céu”.
Não sou alienado, ou melhor, não sou inteiramente alienado. Bem sei que na cidade existem escritórios, gabinetes e sedes de partidos políticos que são verdadeiras sucursais do inferno e mereceriam figurar em alguma seção tenebrosa da Divina Comédia, de Dante. Mas, ao mesmo tempo, Brasília é uma cidade onde sempre é possível acontecer algum acidente da beleza.