No céu da pátria

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

No céu da pátria neste instante, de Sandra Kogut, exibido na mostra competitiva do Festival de Brasileira do Cinema Brasileiro, nos faz reviver, de maneira dramática, o processo das eleições para presidente de 2022, protagonizado por Lula e Bolsonaro, que culminou na apoteose da boçalidade do 8 de janeiro. É um filme muito pertinente para o momento em que vivemos.

Sandra Kogut apostou no escuro e resolveu acompanhar o processo da eleição presidencial de 2022 por meio de uma galeria de personagens reveladores. É sob a pulsação, a sensibilidade, as crispações, as reflexões e olhar deles que percebemos o movimento da história brasileira mais recente.

Sentimos na pele o medo, a incerteza, a angústia, a indignação, o delírio, a fé e a esperança deles. Essa estratégia humaniza o documentário. Antonia Pelegrino, esposa de Marcelo Freixo, não sabe em que país vai morar se Bolsonaro ganhar a eleição. Um personagem extremista de direita afirma que Deus é o comandante do Exército brasileiro para incitar uma intervenção militar. Em nome de Jesus, pastores de igrejas evangélicas pregam a mentira, a fraude e o golpe.

O documentário foi brindado com um desfecho dramático para a glorificação da farsa: a invasão dos vândalos ao Congresso Nacional, ao Palácio do Planalto e ao Supremo Tribunal Federal. Como bem disse uma militante de esquerda, as hordas que atacaram os monumentos-símbolos da democracia em Brasília escolheram a maneira mais sórdida de entrarem para a história: o crime.

Imagine se, quando o Brasil foi eliminado pela Croácia na Copa do Mundo de Futebol, os patriotas pedissem o VAR de papel, acampassem em frente à sede da Fifa, reivindicassem intervenção militar e gol auditável? Na saída do cinema, peguei no ar o seguinte comentário sobre o filme: “É bom, mas é partidário, é de esquerda”. Como diria Antonio Houaiss, permitam-me discrepar. O filme não sai em busca da confirmação de uma tese. A diretora se propôs acompanhar a eleição sem saber que rumo o filme e a história tomariam. E levou às últimas consequências a opção por um cinema-verdade, construído a partir da interação com a realidade.

É notável o empenho da diretora em compreender o ponto de vista do outro, mesmo discordando inteiramente. Ela não aponta o dedo acusador; apenas documenta, mostra, registra, investiga, revela e, principalmente, indaga. Sem perder a ternura e o senso de humor jamais.

Ao perguntar a um personagem bolsonarista qual a razão para a recusa do resultado da eleição, ele responde: “É porque eles não abriram a caixa preta, o código fonte”. É pela mesma mentira que um fanático da extrema direita quase explodiu o Aeroporto de Brasília.

Mas ela não se alinha aos isentões da imprensa, pairando pretensamente acima do bem e do mal. Sandra Kogut assume a claramente a defesa da democracia. O absurdo se escancara a cada fala, tomada ou imagem.

Ao ver O céu da pátria neste instante, senti algo que não vivia há muito tempo no Cine Brasília: a perfeita sintonia entre o filme e a plateia. É o filme certo para a hora certa, de maneira semelhante ao que aconteceu com A cor do seu destino, de Jorge Duran, Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky ou O baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas.

O filme celebra, de maneira explícita, a vitória circunstancial da democracia e, ao mesmo tempo, alerta, de maneira implícita, para as ameaças que ainda pairam sobre a república. Afinal, por tudo que o documentário mostra, enquanto os mentores da tentativa de golpe não forem responsabilizados e presos, o 8 de janeiro permanecerá o dia trágico que não terminou.

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