Rudi Cassel*
A atual Constituição do Brasil foi promulgada em 1988. De lá para cá, o Regime Próprio de Previdência do Servidor Público (RPPS) – previsto em seu artigo 40 – foi modificado seis vezes. A primeira mudança veio pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993, enquanto as reformas mais importantes foram as mediadas pelas Emendas Constitucionais nº 20 e nº 41.
Não suficiente, a Proposta de Emenda Constitucional nº 287, protocolada em 5 de dezembro de 2016, pretende realizar a modificação mais radical até aqui idealizada. Mais que uma reforma, estabelece uma nova previdência para servidores. O que a substituirá, no futuro, é algo que somente a certeza sobre o tipo de Estado que se deseja responderá.
As sucessivas alterações previdenciárias refletem algo mais grave, ligado ao retrocesso de institutos incorporados ao Estado de Direito, no decorrer da matriz liberal-social-democrática que sucedeu ao absolutismo monárquico. No caso brasileiro, a Constituição andou mais rápido que a realidade, retrocedendo antes de concretizar seus desejos originais.
Em paralelo, as apostas econômicas dominantes se recusam a dialogar com alternativas para que a vida de todos melhore, conduta turbinada pela apatia das ideologias de esquerda, supostamente aniquiladas pela queda de determinados Estados e o consequente fim da História.
O resultado da redução gradativa dos institutos sociais do Estado de Direito é sensível, ameaçando a previdência, o trabalho e a sobrevivência daqueles que não alcançarem os requisitos exigidos, progressivamente mais difíceis de serem atingidos.
Em 1988, o tempo de serviço se sobrepunha à exigência de idade mínima no serviço público, até então desnecessária. Incluída a idade mínima de 60 anos para o homem e 55 anos de idade para a mulher, passou-se a se exigir também o tempo de contribuição de 35 e 30 anos, respectivamente, tudo a partir da EC nº 20, de 1998. Na oportunidade, aos servidores que estavam no regime foram exigidos pedágios para manterem aposentadorias e pensões na forma proporcional ou integral. Ao futuro, permitiu-se a criação da previdência complementar.
Cinco anos depois, a EC nº 41, de 2003, alterou os critérios de cálculo das aposentadorias e das pensões, com graves prejuízos, como a perda da paridade e o cálculo pela média remuneratória. Aos trabalhadores antigos foram criadas regras de transição com acréscimo de requisitos distribuídos entre idade mínima, tempo de contribuição e carências no serviço público, na carreira e no cargo, para a manutenção de algumas garantias. Aos novos, que ingressaram após a instituição do regime complementar sobrevindo em 2013, o teto de benefício passou a ser o mesmo do Regime Geral de Previdência Social.
Diante de algumas arestas, em 2005, 2012 e 2015 foram realizadas alterações pontuais, seguidas pelas constantes reclamações dos governos e dos meios de comunicação de massa, sincronizadas sobre o suposto déficit previdenciário (matéria de muitas divergências e abordagens que apresentam superávit pela seguridade), em nítida preferência aos planos privados de benefício, administrados por instituições financeiras que – há tempos – desejam tais investimentos.
Não por acaso, os noticiários atuais dedicam longo tempo à propaganda e orientação sobre a escolha entre múltiplos produtos de seguridade social, ofertados pelos bancos. Trata-se da migração do regime de repartição para o de capitalização; migração parcial, por enquanto.
A evidência de que se deseja uma solução menos social para a previdência veio com a PEC 287, que afeta todos os servidores, estabelecendo nova transição apenas aos trabalhadores que entrarem até a eventual publicação da emenda resultante da sua aprovação. Na condição de relator na Comissão Especial instituída pela Câmara dos Deputados para análise da proposta, o deputado Arthur Maia apresentou parecer com substitutivo em 19/04/2017, com várias mudanças em relação ao texto original. Esta nota técnica se detém na versão substitutiva, considerando que a redação original da PEC foi objeto de apreciação em outra oportunidade.
Se aprovado o substitutivo da proposta, o que se conhece por “requisitos e critérios” para aposentadorias e pensões continuará alterado, profundamente. A idade mínima para homens passará a 65 anos (5 a mais que a idade vigente), enquanto a das mulheres foi ajustada para 62 anos (7 a mais que a idade vigente), a paridade permanece extinta. Em verdade, desde a Emenda Constitucional 41, de 2003, os novos servidores perderam o direito ao reajuste das aposentadorias com base nas alterações remuneratórias da atividade (paridade), adotando-se os mesmos reajustes dos benefícios do Regime Geral (INSS).
O tempo de contribuição mínimo para aposentadoria voluntária foi fixado em 25 anos, como a proposta original, mas o piso dos proventos da aposentadoria será de 70% da média da remuneração contributiva (na proposta original era de 76%), acrescido de percentuais que oscilam entre 1,5% e 2,5% por ano excedente aos 25. Aqui, um servidor com 65 anos de idade e 35 anos de contribuição receberá 87,5% (70 + 17,5%) da média, enquanto uma servidora com 62 anos de idade e 30 anos de contribuição receberá 77,5% (70% 7,5%) da média. Na nova sistemática, considerando alíquotas variáveis de acréscimo a partir de 70% (referente a 25 anos de contribuição, com 1,5% a 2,5% por cada ano excedente), homens e mulheres precisam trabalhar 40 anos (recolhendo contribuição previdenciária) se desejarem 100% da média remuneratória.
As regras de transição anteriores serão extintas, mas a nova transição ficou parcialmente diferente da versão original da proposta. Estarão salvos aqueles que se aposentaram ou preencheram os requisitos para tanto antes da publicação da nova emenda. Todos os servidores com idade igual ou superior a 50 (homem) e 45 (mulher), que ingressaram até a data da futura emenda, podem optar por uma nova transição para aposentadoria voluntária, além de 30% a mais de tempo contributivo e 55 (mulher) ou 60 (homem) anos de idade mínima (aposentadoria sem paridade e com 100% da média remuneratória).
Aos que ingressaram até 31/12/2003 (EC 41), não importa a idade atual, devem trabalhar até 65 anos (homem) ou 62 anos (mulher) se quiserem paridade e integralidade sem média remuneratória, na aposentadoria voluntária; também devem atender à exigência de 30% a mais do tempo de contribuição restante, com base nas referências 30 (mulher) e 35 (homem).
A aposentadoria por incapacidade permanente, entendida como aquela que não permite readaptação para outro cargo, de complexidade semelhante ou inferior ao cargo de origem (mantida a remuneração de origem), tem por piso 70% mais um porcentual variável pelos anos excedentes a 25 de contribuição (1,5% a 2,5%), ressalvados os casos de acidente de serviço e doença profissional (100%).
A aposentadoria especial ficou restrita a servidores com deficiência, policiais, professores, assim como aos que laborem em condições que, efetivamente, prejudiquem a saúde, devendo ser regulada por lei complementar. A lei complementar vindoura tem limites mínimos preestabelecidos, a saber: (i) policiais não poderão se aposentar com menos de 25 anos de contribuição na atividade policial e 55 anos e idade; (ii) professores poderão se aposentar aos 60 anos de idade, 25 de contribuição, 10 no serviço público e 5 no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, desde que exclusivamente nas funções de magistério na educação infantil ou no ensino fundamental ou médio; (iii) servidores – em condições que efetivamente prejudiquem a saúde – não poderão se aposentar com menos de 55 anos de idade e 20 de contribuição. Somente às pessoas com deficiência ficou garantida 100% da média remuneratória na modalidade especial de inatividade, a ser regulamentada.
Na modalidade compulsória, a idade projetada é de 75 anos, dividindo-se o tempo trabalhado por 25 (limitado a um inteiro), sobre o que incidirá o piso de 70% da média remuneratória, permitidos acréscimos percentuais (de 1,5% até o 5º ano, 2% até o décimo ano e 2,5% até o décimo quinto ano) para cada ano de contribuição superior a 25.
A aposentadoria por idade será extinta. Hoje, ela é possível aos 65 anos de idade (homem) ou 60 anos de idade (mulher), proporcional ao tempo de contribuição. No terreno das acumulações, restarão vedadas a percepção de mais de uma aposentadoria pelo Regime Próprio de Previdência Social (regime do servidor público), salvo nas hipóteses de acumulação de cargos constitucionalmente permitidas (dois de saúde, um de natureza técnica e um de magistério, magistratura e magistério ou promotor e magistério, conforme ocorre na redação constitucional vigente). Também estarão vedadas a acumulação de quaisquer pensões por morte do RPPS e/ou RGPS, assim como de aposentadoria e pensão por morte de regimes próprio e geral, quando o valor total superar dois salários mínimos.
Aos pensionistas, aplicar-se-á a regra da metade (50% de cota familiar) mais 10% por dependente, irreversíveis e limitadas ao valor da aposentadoria a que o servidor teve ou teria direito. Em outras palavras: na morte do instituidor da pensão, o cônjuge recebe a quota familiar de 50% (mais 10% pela condição de dependente previdenciário, totalizando 60%). Se tiver filhos na condição de dependentes, cada um recebe 10% até que se tornem maiores. O total, como se disse, não pode ultrapassar 100%. A base de cálculo será a totalidade dos proventos do servidor que morreu ou, se ainda estava em atividade, o cálculo será sobre pela simulação do que teria direito o servidor, se aposentado fosse por incapacidade permanente, na data do óbito (a redução pode ser acentuada).
Em até dois anos, os entes federativos devem instituir seus regimes complementares, a exemplo do que foi feito em 2013 pela União, para que os servidores dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios sejam submetidos, indistintamente, ao teto de benefício do RGPS (administrado pelo INSS). O regime de capitalização da previdência complementar é de contribuição (não de benefício) definida. Investe-se no mercado financeiro, realimentando o que resta de esperança no modelo econômico vigente, sujeito a ciclos de recessão indesejáveis e reiterados, com pequenos intervalos entre um e outro. Na capitalização, sabe-se o valor da contribuição, mas não se sabe qual será seu resultado.
Há vários aspectos de aparente, senão evidente, inconstitucionalidade na proposta. Em primeiro lugar, viola-se o direito a regras de transição específicas trazidas pelas Emendas 41 e 47, com destinatários determinados, que iniciaram o exercício do direito no momento da publicação das emendas. Não foram regras gerais, mas de proteção específica que incidiram sobre todos os que ingressaram até 31/12/2003 (sem contar a dupla proteção aos que ingressaram até 16/12/1998). A transição estabelecida não conferiu expectativa, mas exercício imediato de direito que não pode ser alterado 13 anos depois, sob pena de violação ao artigo 5º, XXXVI, da Constituição.
A vedação ao retrocesso social, princípio de particular importância nos direitos previdenciários, foi abandonado, como se nada representasse. O ato jurídico perfeito constituído para os servidores que preencheram o requisito exigido pelo “contrato” constitucional (o Estado garante, desde que), ou seja, terem ingressado até 31/12/2003, é conjugado com o direito adquirido e ambos têm a proteção constitucional, não podendo ser alterados.
Para piorar, o desrespeito ao caráter contributivo do regime (consequentemente, retributivo) se une à ausência de demonstração atuarial incontroversa da necessidade das mudanças, convergindo para o confisco tributário e remuneratório dos servidores públicos.
Há muitos argumentos que podem ser levantados contra a PEC 287, essenciais à segurança jurídica. Se, em nome de flutuações econômicas (ou pretensamente econômicas), tudo é possível, desestruturam-se os elementos que conferem legitimidade às instituições e conformam a cidadania. O risco de ruptura não é apenas do serviço público, mas do Estado que se acredita democrático e de direito.
*Rudi Cassel, advogado especialista em Direito do Servidor, é sócio do Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados