No ar como o Ben de Vai na fé, o ator Samuel de Assis conta sobre o caminho que percorreu até o primeiro protagonista, o que representa ser um galã preto e as bandeiras que defende por meio de seus personagens
por Patrick Selvatti
A novela Vai na fé está há um mês no ar e tem sido um presente para a televisão brasileira. Com números altos na audiência e sucesso de crítica, a obra de Rosane Svartman (autora das celebradas Totalmente demais e Bom sucesso) é uma história deliciosa, que fala de amor, de fé e de direitos humanos, sem ser piegas. Ao contrário, o enredo emociona e diverte a cada capítulo.
E não é só por isso que a produção do horário das 19h engaja: é a primeira do gênero a trazer, em uma história contemporânea, um elenco composto 70% por atores negros — incluindo os protagonistas. Como o advogado Benjamin, um homem de 40 anos, bem-sucedido, bonito, romântico e de ótimo caráter, que poderia ser entregue a qualquer intérprete, independentemente da cor da pele, mas caiu como uma luva no colo do ator Samuel de Assis.
Para o artista sergipano, que completa 40 anos em maio, Ben é o personagem que mais tem a ver com a sua própria essência. “Essa foi a parte mais difícil e também a melhor coisa. Ele é muito parecido comigo. Eu precisava pegar esse personagem”, conta ele, que credita a conquista do papel nessa novela à justamente o tema que ela carrega: a fé. Samuel fez teste para as últimas quatro novelas do horário, todas para protagonista e, em todas anteriores, bateu na trave. “Às vezes, a gente lamenta uma coisa, mas não é para ser. Tem uma coisa melhor te esperando lá na frente”, reflete.
Lugar de fala
Samuel acredita que Vai na fé seja um marco histórico pela forma como está tratando as questões raciais, especialmente seu personagem, que ocupa um espaço de destaque negado, por muito tempo, à fatia negra da classe artística. “É uma pena estarmos comemorando isso ainda em 2023, mas é algo que precisamos comemorar, sim. Estamos vivendo uma revolução. Não tem como voltar atrás”, celebra ele, que estrela pela primeira vez uma novela e pode ser considerado o primeiro cabeça de elenco do sexo masculino preto em uma novela fora do contexto escravagista.
Samuel tem lugar de fala. Embora seu rosto ainda esteja sendo assimilado pelo grande público, o ator tem longa estrada no teatro, no cinema e também na tevê. Sua estreia em novelas foi há 15 anos, em uma pequena participação em Ciranda de pedra — protagonizada por Ana Paula Arósio, em 2008, na TV Globo. Dois anos depois, estava novamente ao lado da atriz, agora na série Na forma da lei, na qual interpretou um dos cinco protagonistas — o único preto.
Nesse trabalho — lembrado por ser o último de Arósio —, Samuel era um jornalista investigativo que, além de representar a “cota racial” do grupo, era homossexual — outra minoria simbolizada. Na trama, porém, o jovem repórter Ademir escondia dos amigos a sua orientação sexual e, no decorrer da jornada policial que marcou a série, tinha um envolvimento amoroso com um delegado que era pai de família. “Tanto a inclusão racial quanto a sexual eram uma discussão sutil ainda, mas que já caminhava”, relembra.
Doze anos depois da série Na forma da lei, a arte convocou Samuel de Assis a abraçar novamente a causa da diversidade sexual em uma produção de grande alcance. Na série Rensga Hits, um sucesso recente da Globoplay, o ator deu vida a Kevin Costa, o segurança gay que se envolve amorosamente com o cantor sertanejo famoso e enrustido Deivid Cafajeste, defendido pelo goiano Alejandro Claveaux. Desta vez, o tema veio de forma mais robusta, porém tratado com naturalidade precisa.
O resultado foi positivo: o beijo na boca entre os dois atores durante o lançamento da produção foi o assunto da cobertura do evento — com elogios de crítica — e, ao longo da primeira temporada, o casal fictício ganhou a torcida do público — e teve final feliz, ao contrário da primeira história, em que o romance do casal homoafetivo teve final trágico. “É bom e necessário ver na teledramaturgia brasileira histórias de casais gays que dão certo, que se amam, se admiram, como é na vida, sabe? Chega de toda vez casal gay ser retratado como fetiche, como sexo apenas”, foi o que ele defendeu, à época.
Ao Correio, Samuel explicitou o seu entusiasmo com os dois últimos personagens que recebeu. “Me entusiasma muito ser um agente dessa transformação que estamos vivenciando. Falar de homossexualidade como algo humano e legítimo, de pessoas pretas em situações que antes só eram retratadas por brancas… É nesse lugar que eu quero fazer diferença”, avalia.
Beleza e estilo
Antes de assumir o primeiro protagonista, Samuel de Assis marcou presença em diversos trabalhos no streaming, como as séries 3% (2018) e Cidade Invisível (2021), da Netflix, e Lov3 (2022), do Prime Video. Mas foi mesmo como o Kevin de Rensga Hits que o ator viu a chave virar e despontar como um galã — título que ele, entretanto, prefere evitar. “Acho essa coisa (de ser galã) muito antiga, isso meio que caiu. O título foi por muito tempo um símbolo de uma masculinidade que, hoje, não cabe mais no mundo. Para ser galã, é preciso apenas ser uma pessoa de verdade”, argumenta.
O ator, entretanto, valoriza o fato de estar em um lugar em que o homem preto deixou de ser hiperssexualizado, como um objeto de fetiche, o que ele considera uma conquista social. Para compor o Ben, um homem comum, Samuel fez dieta e treinou com ajuda profissional, mas nunca com o foco em ficar saradão. E não foi por falta de vaidade. Ele defende que é vaidoso na medida necessária para a profissão que exerce. “A vaidade só não pode estar em excesso, porque atrapalha”, argumenta. O bonitão assume que se preocupa com a aparência, com o que veste, e declara, sem receios: adora a moda. “Adoro descobrir novos jeitos de me vestir, novos jeitos de contar uma história por meio da roupa. Mas não é nada que tire meu sono. É algo que me ajuda a estar melhor, mais à vontade na vida”, conta.
Por fim, sobre ser símbolo sexual, Samuel rejeita a etiqueta que lhe foi colocada pela atuação na série Rensga Hits. “Não me acho símbolo sexual, mas se você me disser que eu sou um homem bonito, vou ficar muito agradecido…”, finaliza o ator, que já declarou ter passado a vida sendo moldado para não se enxergar belo. Mas alguém aí diz que ele não é?