Sem acesso a rede pública universalizada de cuidados para crianças de até 3 anos, as trabalhadoras com filhos pequenos sofrem uma série de exclusões no mercado corporativo, o que prejudica a inserção e o desenvolvimento profissional feminino.
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Santiago, Chile — Do lado de fora, parece uma casa como as outras da rua, térrea e simples, com grades no portão. Por dentro, porém, a edificação, mesmo que modesta, abriga um universo de diversão, aprendizado, afeto e arte para 20 crianças de 2 anos a 5 anos e 11 meses. Assim é o único Centro Educativo Cultural de la Infancia (Ceci) localizado na comuna de La Granja, em Santiago, no Chile. Nesse modelo de educação infantil, todos convivem juntos em uma única sala, onde brincam, ouvem histórias, fazem desenhos e pinturas, além de almoçar. Muito além da estrutura ou de qualquer outro aspecto, o que faz a diferença ali, como contam as famílias, é a dedicação das duas educadoras, Cecilia Férnandez e Gladys Hormazaval.
“Sou apaixonada pelo que faço. Fico encantada com a pureza das crianças”, conta Gladys. O amor pela atividade é visível em tudo o que faz. Para explicar, por exemplo, a uma menina de 3 anos que ela não pode sair da sala enquanto os outros almoçam, não se limita a ordenar ou proibir. A funcionária senta com a garota e esclarece que, naquele momento, se ela ficar no quintal, estará sozinha, pois durante o almoço, as “tias” precisam ajudar as outras crianças a comer. “E se você cair e se machucar, doerá em você e também em mim. Sofreremos as duas.” A mesma gentileza e sensibilidade observa-se em Cecilia.
“A convivência com as crianças e as famílias sempre foi fácil para nós, pois nos baseamos no respeito. Há algumas muito ativas, outras mais reservadas, e aceitamos o jeito de cada uma. Não são elas que têm de se adaptar a nós, mas o contrário”, afirma Cecilia. Ali, meninos e meninas são livres para brincar com o que quiserem e só existe uma regra, baseada na consideração pelos demais: “É preciso respeitar o amiguinho, se ele está usando um brinquedo, por exemplo, tem de esperá-lo parar de usar”. Com o convívio social, é possível notar o desenvolvimento de cada aluno.
Experiência aprovada
“Uma das crianças aqui tem autismo, e o pai estava desesperançoso quando a trouxe para cá, mas, em pouco tempo, as mudanças eram visíveis. Ele conta que o filho mudou demais, socializa, participa das atividades”, comemora. Os bons resultados também têm como componente fundamental a participação ativa das famílias que não só comparecem a reuniões, mas avaliam as funcionárias periodicamente e são estimuladas a contribuir com os projetos da instituição, cada uma como puder. Os pais de Agustín Vergara, 5 anos, por exemplo, fazem móveis em madeira e trouxeram para o centro infantil um esqueleto de baleia em madeira, quando a turma estava investigando esse animal.
Em outra ocasião, quando as crianças estavam aprendendo sobre as abelhas, produziram a réplica de um apiário. Os temas que motivam as atividades são escolhidos pelas próprias crianças. Evelin Gallardo, mãe de Agustín, conta que dois tios do filho frequentaram o espaço durante a infância. “Por isso, procuramos esse lugar, que é excelente, a comida é de qualidade, tudo é bem-feito. O que realmente faz a diferença são as ‘tias’. O Agustín está aqui há três anos e melhorou muito na maneira de expressar ideias.” O garoto é um dos mais sociáveis da sala, gosta de puxar conversa com todo mundo.
Volta e meia diz aos outros que tem superpoderes: “O principal é o da supervelocidade”, brinca. Luciana Poblete Sepulteda, 5, diz que tem muitos amigos ali no centro infantil. “O que eu mais gosto aqui é descobrir sobre os animais, como a baleia”, conta. Ela mora perto do centro infantil e costuma ser buscada pela avó, Cecilia Cabierre, que é só elogios para a instituição. “É um espaço muito bom. Nesses dois anos, a Luciana aprendeu mais sobre compartilhar, dividir com os outros e socializar”, diz. Os Cecis são uma das modalidades alternativas ligadas à Junji (Junta Nacional de Jardines Infantiles). Esse tipo de espaço é sempre cedido e administrado por alguma organização social, recebendo fundos do governo. Cada estabelecimento pode atender até 32 crianças em período parcial de segunda a sexta-feira. À noite, são realizadas atividades com a comunidade.
Modelo diferente
O Ceci de La Granja surgiu como um centro comunitário de mães na década de 1970. “Durante o período da ditadura (que durou de 1973 a 1990), havia muitas famílias entristecidas. Muitos maridos tiveram de imigrar, e as esposas ficaram sozinhas. Éramos mães, mulheres da comunidade, que não tínhamos nada e começamos a trabalhar aqui tecendo lã, que vendíamos para o exterior”, recorda Cecilia. Elas não tinham com quem deixar os filhos, então vinham com eles para o espaço. Com o passar do tempo, cada vez mais integrantes passaram a trabalhar fora, então o que antes era um lugar para fazer artesanato na presença das crianças acabou se tornando um ambiente para acolher a meninada, mantido por mulheres da região.
“Recebíamos doações de alimentos, como queijo e leite, de ONGs e, em 1987, escrevemos uma carta à Junji pedindo ajuda para que fornecessem alimentação completa para os meninos”, afirma Cecilia, cujos três filhos e três netos frequentaram o espaço durante a infância. A existência e a continuidade do centro é prova do esforço das funcionárias e do envolvimento da comunidade com ele, pois os desafios não foram poucos. “Antes, tínhamos muitos cômodos, então atendíamos mais crianças, divididas em três turmas, até passarmos por um incêndio”, relata Cecilia. A casa ficou destruída depois que o fogo, que começou em um vizinho, se alastrou para ali.
A edificação (que hoje conta com dois salões, um onde funciona o centro infantil, e outro onde são oferecidas oficinas para avós) foi reconstruída pelas próprias famílias. Durante as obras, a iniciativa funcionou por dois anos em uma capela e por mais um em um colégio. Depois disso, o local passou a receber, além de alimentação de Junji, recursos do governo, tornando-se um Ceci. Natalia Jimena Tapia Arévaldo, profissional de gestão de programas da Junji, explica que cada unidade do tipo tem particulares, mas o que caracteriza a todos é o senso de comunidade. “A participação é muito grande. Se os pais trabalham e não podem vir ali pessoalmente, mandam algo”, observa.
“Existe a noção de que a responsabilidade não é só da instituição, pois a família é a primeira fonte educadora”, explica. “E, assim, os Cecis acabam sendo, muitas vezes, mais legitimados pela população, há mais confiança por parte dos pais, pois eles também participam do processo e conhecem os funcionários”, completa Paulina Saldaño Aránguiz, funcionária do sistema de proteção à infância do programa Chile Crece Contigo.
>> Leia amanhã sobre o atendimento de saúde a crianças e famílias no Chile
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
Chile também enfrenta desafios para universalizar a educação infantil, especialmente até os 3 anos
Santiago, Chile — Capacitações e avaliações permanentes de professores garantem a qualidade do atendimento de crianças de até 6 anos em ambientes educativos chilenos. Apesar de ter avançado, o país também tem, como o Brasil, o desafio de ampliar o acesso a creches e jardins de infância, especialmente até os 3 anos de idade. Por lá, a educação infantil é obrigatória entre os 5 e os 6 anos, quando as crianças frequentam o nível chamado Kinder.
Nessa faixa etária, a cobertura passou de 85%, em 2001, para 98%, em 2017. No mesmo intervalo, a cobertura de educação infantil como um todo saltou de 30% para 53,24%. A universalização antes dos 5 anos é um desafio e uma das metas da Junta Nacional de Jardines Infantiles (Junji), instituição pública responsável pela administração e fiscalização de creches e jardins de infância no país desde 1970. No total, cerca de 793 mil meninos e meninas têm acesso à educação infantil por lá, dos quais apenas 6% frequentam instituições pagas.
Cerca de metade está em unidades públicas; e 43% em entidades particulares, mas com subvenção do governo. Enquanto o acesso não se torna universal, são atendidas prioritariamente as crianças das famílias mais pobres e as de até 4 anos. No total, a Junji administra 1.276 jardins de infância no país, 654 clássicos (fundados, mantidos e administrados pelo governo) e 622 alternativos (que recebem dinheiro público, mas a gestão é de alguma organização social). Belia Toro, chefe de desenvolvimento curricular da Junji, conta que, apesar de a Junta ter 48 anos e tradição em educação infantil, muito mudou após a criação do programa Chile Crece Contigo, há 12 anos. “A partir disso, passou a existir, além de um trabalho multissetorial (que precisa se intensificar), uma ideia de educação para a família, não só para as crianças”, aponta.
“Há uma série de materiais, oficinas e elementos de apoio para os pais”, completa. Adriana Gaete Somarriva, vice-presidente executiva da Junji, conta que a capacitação e a avaliação permanente de professores é prioridade na rede. Graças a isso, a oferta de educação infantil é de alta qualidade. “Eu tive muita experiência em escolas de educação básica. E, entre as crianças que estão chegando, você nota imediatamente quais são as que passaram por educação infantil e as que não. Pois o tempo que demoram a aprender a ler é muito menor”, compara. “Apesar de não serem alfabetizadas nesse período, elas têm um bom desenvolvimento na linguagem que faz toda a diferença”, afirma.
Comparações
O Brasil tem 8,5 milhões de crianças matriculadas na educação infantil, o que inclui creche e pré-escola. No Chile, as matrículas são da ordem de 793 mil — quase 11 vezes menos. O vizinho latino-americano também tem população e terreno mais de 11 vezes menores que os brasileiros. Há diferenças, mas também similaridades: ambos os países precisam trabalhar para ampliar o acesso à educação infantil.
Por aqui, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é ter, pelo menos, 50% das crianças de até 3 anos frequentando creches, mas correlacionando dados das Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas 26% o fazem.
No Chile, a taxa média de matrículas até os 3 anos está em patamar similar, mas ligeiramente maior que o do Brasil: cerca de 29%. Uma grande diferença é que boa parte da oferta brasileira é particular, enquanto no Chile é majoritariamente pública. Outra questão é que a procura dos próprios pais chilenos por matrículas até os 3 anos ainda não é tão alta, de acordo com avaliação da Junji.
Numeralha
Cobertura da educação infantil no Chile por faixa etária
De 85 dias a 1 ano – 10%
De 1 ano a 2 anos – 26%
De 2 anos a 3 anos – 33%
De 3 anos a 4 anos – 64%
De 4 anos a 5 anos – 90%
De 5 a 6 anos – 98%
Fonte: Junji
Pais satisfeitos
Com 31 educadoras e cinco cozinheiras, o Jardín Infantil Santa Mónica atende 236 crianças de 0 a 4 anos de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 16h30. Ali, as crianças tomam café da manhã e almoçam. As turmas são divididas por faixa etária. A instituição se localiza na comuna de Recoleta, que, no total, tem seis jardins infantis clássicos (ou seja, fundados, mantidos e administrados pelo governo), como o de Santa Mónica, e nove que funcionam com transferências de fundos. María Jesus Arriagada, diretora da unidade, conta que há uma reunião mensal com todos os funcionários. “Nessas ocasiões, passamos um dia discutindo, promovemos capacitações, conseguimos revisar nosso projeto educativo e ver no que podemos melhorar.”
Num centro maior, é mais difícil que a participação comunitária seja tão próxima quanto em unidades menores, mesmo assim, o envolvimento familiar é muito estimulado. “Os pais que podem vêm e interagem. Os que não têm como estar presencialmente podem se fazer de presentes de outras formas. Pedimos que enviem por exemplo um vídeo mostrando como é a criança na rotina do lar”, conta a diretora María Jesus. Para subsidiar o trabalho e atender melhor às necessidades de cada estudante, ela conta que troca informações e dados sobre alunos com equipes de serviço social e do centro de saúde da região.
Para ela, o retorno das famílias é muito gratificante, como quando contam que a criança aprendeu algo diferente e mostrou em casa. “Muitos responsáveis que tiveram os filhos num jardim particular e vêm para cá gostam muito mais daqui. Não necessariamente a educação paga será melhor. Há um abismo de diferença entre a educação infantil pública e muitos jardins particulares”, comenta. A estudante de estética Susan Ramirez fica muito tranquila ao deixar a filha de 1 ano e 9 meses, Florencia, ali. “Vejo que ela gosta das tias. Isso é o mais importante. Mais que a estrutura, as educadoras fazem a diferença, pois são muito prestativas e dedicadas”, elogia.
A haitiana Dialine Teautij mora no Chile há pouco tempo e, apesar de falar pouco espanhol, demonstra que está satisfeita com o desenvolvimento da filha de 1 ano, Delca. “Ela fica bem e feliz aqui. Não chora para vir”, conta a vendedora numa barraca de feira. Álvaro Berrios Vergara trabalha na construção civil e busca o filho Gustavo, 3, no local quase todos os dias. “Este é o primeiro ano dele nesse jardim e vejo que é muito melhor do que o em que ele estava anteriormente, pois as tias são mais próximas dos alunos e se preocupam mais”, afirma o pai ainda de outros filhos de 16 anos, 12 anos e 10 anos. Nicolás Riquelme só tem elogios para a experiência da filha, Colomba, 3, ali.
“A qualidade é excelente, ela me conta dos desenhos que fizeram e outras atividades.” Colomba fala com carinho de Joselyn Campillay, educadora que trabalha há três anos no local. A filha dela, Fernanda, 3, também frequenta o jardim, mas em outra turma. “É muito gostoso conviver com crianças, todos os dias há algo especial. Tenho 30 anos, mas carrego comigo a alegria da minha infância”, conta ela que também tem um filho de 12 anos.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
O que o Brasil pode aprender com o Chile sobre primeira infância?
Santiago, Chile — Os rumos da primeira infância no Brasil nos próximos quatro anos foram selados com o resultado final das urnas no último domingo. A partir de 1º de janeiro de 2019, recairá sobre o presidente eleito, Jair Bolsonaro; o governador eleito do DF, Ibaneis Rocha; e os governadores dos 26 estados parte considerável da responsabilidade pelo futuro das crianças de até 6 anos do país. Com vontade política e gestão adequada, eles podem fazer muito por elas — ou não. Os novos governantes têm o potencial de acelerar e intensificar o desenvolvimento infantil, caso abracem a causa e a tratem como prioridade.
Um investimento que se provou melhor do que qualquer outro: além do retorno social, cada dólar gasto com o início da vida uma vez traz um retorno anual de mais de 14 centavos por criança pelo resto de seus dias. O cálculo é do economista estadunidense James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel da área no ano 2000. Os efeitos da decisão política de priorizar a primeira infância não precisam se limitar a um mandato, desde que o tema seja objeto de uma política de Estado e não de governo. É o que aconteceu no Chile, país que mais investe na primeira infância da América Latina. Lá, o programa Chile Crece Contigo, adotado a partir de 2006, tornou-se lei em 2009 e continuou mesmo após a saída da ex-presidente Michelle Bachelet, que iniciou o projeto.
Ela e Sebastián Piñera, atual presidente chileno, “revezam” o comando do país desde então. Michelle Bachelet teve dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018) e Piñera começou, em março deste ano, seu segundo, após presidir a nação latino-americana de 2010 a 2014. Apesar de os dois serem opositores na política, quando o assunto é primeira infância, eles se tornam aliados, cada um contribuindo para a melhoria e a expansão do programa. O sistema de proteção da primeira infância do Chile tem a missão de apoiar plenamente todas as crianças e suas famílias por meio de uma abordagem multissetorial e multidimensional.
Na prática, elogios
A auxiliar de limpeza Janira Gomez Espinosa, 24 anos, cria sozinha dois filhos, de 5 e de 3 anos. A família vive em La Pintana, uma das comunas mais pobres da região metropolitana de Santiago e, apesar das dificuldades, Janira se sente muito apoiada pelos serviços do Chile Crece Contigo. “Os kits de estimulação, todos os materiais são muito bons. Por meio de folhetos e oficinas para pais, nos dão orientações sobre como cuidar das crianças. Para mim, é muito bom”, elogia. O filho mais novo, Vladimir, apresenta um atraso na fala. Janira o leva para consultas no centro de saúde da região, que conta com uma sala de estimulação e a participação de fonoaudiólogos, enfermeiros e educadores. “Todos os profissionais nos atendem muito bem.”
Comparação
Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2016 revelou que o Chile destina US$ 882 anualmente a cada criança de até 5 anos, sendo o país da América Latina que mais investe no segmento. Em segundo lugar, aparece o Brasil, reservando US$ 641 por criança nessa faixa etária. Em ambos os casos, o montante equivale a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim como as outras nações latino-americanas, Chile e Brasil ainda investem cerca de cinco vezes mais nas crianças de 6 a 12 anos do que nas mais novas (cerca de US$ 2.608 por ano no caso do Chile; e US$ 2.179, no Brasil — 1,7% e 2,3% do PIB de cada um respectivamente).
Modelo replicável
Alejandra Cortazar é pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. O grupo lançou um relatório de monitoramento da Agenda Regional para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância, acordo de metas assinado por diversos países latino-americanos, incluindo o Brasil. “A partir desse monitoramento, vemos que é consenso que Chile Crece Contigo é uma política muito relevante em termos de infância no país e na América Latina.” Tanto que o modelo foi adaptado e replicado em outros países, como Colômbia, Uruguai e Panamá.
Questionada se um sistema semelhante funcionaria no Brasil, Alejandra, que é doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, não tem resposta pronta. Ela avalia, porém, que, diferentemente do que se possa pensar, a dimensão geográfica e social não seria um empecilho. “O país tem de estar disposto a investir em infância para dar certo. No Chile, foi uma política feita com padrões de qualidade superaltos, o que exige um alto investimento”, pondera.
Membro diretora da Fundación Educacional Oportunidad e conselheira da Agencia de Calidad de la Educación, ela observa que a iniciativa foi uma mudança de paradigma com relação à qualidade que a população pode esperar de algo público no país dela. “Qualquer pessoa que tenha vivido no Chile nos últimos 10 anos sabe que houve uma mudança importante em um monte de temas a partir de Chile Crece Contigo, incluindo no processo de humanização do parto, a inclusão dos pais, o apoio às famílias, os materiais entregues, a integração de setores”, avalia.
“Tudo isso dignificou a infância e as famílias no processo de ser pais. É raro no Chile ver coisas públicas de excelente qualidade, e todo o material do programa é do mais alto padrão. É um tratamento muito pouco comum”, diz. “É algo totalmente diferente ao que estamos acostumados. Então, é um país que está entregando qualidade para as crianças pequenas e, assim, deixando claro para a sociedade a importância delas. Houve uma mudança de mentalidade no povo com relação a valorizar o início da vida.”
Resultados
O impacto é bastante relevante: 90% das crianças de 4 a 5 anos frequentam escola de educação infantil; a taxa de frequência de creche entre crianças de 3 anos quase dobrou entre 2006 e 2015, passando de 16,4% para 30%. Ao monitorar meninos e meninas de perto por várias frentes (saúde, assistência social e educação), é possível detectar sinais de atraso no desenvolvimento precocemente e iniciar estimulação específica, o que resultou em 42% das crianças com algum tipo de deficit acompanhando as demais. Afinal, um dos lemas do programa é “não deixar nenhuma criança para trás”.
A política pública abarca grande variedade de ações, desde atendimento pré-natal, promoção da paternidade ativa, subsídio para gestantes em situação de pobreza, visitas domiciliares, kits (de brinquedos, livros, roupas e outros materiais), oficinas para mães e pais, creche, jardim de infância e linha telefônica de apoio psicológico para pais. Gerido pelo Ministério de Desenvolvimento Social do país, o programa envolve também os ministérios de Educação e Saúde. O orçamento anual do programa é da ordem de US$ 83 milhões, o que não constitui todo o investimento na primeira infância no país.
Trabalho conjunto
Bacharel em educação pela Universidade do Chile e doutora pela Universidade de Granada, Pamela Rodríguez Aceituno avalia que o programa foi um grande marco do país em relação à primeira infância. “O Chile Crece Contigo deu visibilidade à necessidade de cuidado com as crianças em um sistema público que, de alguma maneira, articule distintas ações e áreas.” Chefe de pedagogia na educação infantil da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Chile, ela acredita que uma das maiores contribuições do programa é o fortalecimento das famílias. “A política estimula o bom cuidado dos pais. Há uma cartilha e uma oficina chamada ‘Ninguém é perfeito’ que mostra que o programa não vai julgar ninguém por ser pobre, solteiro, mulher, imigrante, adolescente ou qualquer outra coisa”, diz.
“Ao contrário. Entendendo a sua situação, o sistema ajudará e apoiará as pessoas para que sejam bons pais e boas mães independentemente disso. É como se o governo dissesse: entendo suas condições, por isso te ajudo”, afirma. Assim, Chile Crece Contigo significou uma mudança de visão no sistema de proteção infantil. “Saímos da abordagem protecionista e tradicional, de simplesmente invalidar os pais e de recolher as crianças daqueles com menos condições para a abordagem de ajudá-los para que eles cuidem bem das crianças”, destaca. Pamela relata que muitas famílias conseguiram se reconectar com o prazer de brincar e conviver com crianças pequenas.
» Leia amanhã sobre como funcionam berçários, creches e jardins de infância no Chile
* A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
E se os novos governantes abraçarem a causa da primeira infância?
Santiago, Chile — A responsabilidade pelo futuro da primeira infância no Brasil estará, em grande parte, nas mãos dos candidatos eleitos para a Presidência da República e o governo do Distrito Federal e dos estados a partir de hoje. O poder público tem aptidão para garantir os direitos e o pleno desenvolvimento das crianças do país — ou não. Tudo depende dos recursos, das políticas públicas e, para começar, da vontade política para promover a valorização da fase que começa no útero da mãe e se estende até os 6 anos de idade. Independentemente do partido ou do posicionamento ideológico, os novos governantes têm potencial de se tornarem grandes agentes de transformação nesse sentido.
Exemplos de fora mostram o grande impacto que a decisão de abraçar a causa da primeira infância pode trazer a um país. E não é preciso ir muito longe: é possível aprender lições valiosas de vizinhos, como o Chile. A república encravada entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico viu o tratamento destinado às crianças pequenas se revolucionar nos últimos 12 anos com a criação do programa intersetorial Chile Crece Contigo, impulsionado pela decisão de quem teria poder para fazer com que ministérios diferentes trabalhassem juntos: a então presidente Michelle Bachelet. A médica e política chilena presidiu o país em dois mandatos: o primeiro, entre março de 2006 e março de 2010, e o segundo, entre março de 2014 e março de 2018.
Como o sistema de proteção da primeira infância foi instituído como política de estado, e não de governo, continuou se desenvolvendo durante o mandato de Sebastián Piñera, de centro-direita, que comandou o país entre março de 2010 e março de 2014 e acaba de assumir novamente a presidência do Chile, que deve prosseguir avançando com o programa, de acordo com Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile. “O programa se tornou lei e, por isso, não pode desaparecer. O orçamento tem crescido a cada ano”, diz. Por fatores econômicos e geográficos, trata-se de um país com o qual o Brasil pode se comparar.
Se uma política pública voltada à primeira infância deu certo por lá, é possível que um programa voltado a esse público dê certo por aqui. Jeanet ressalta, porém, que qualquer política precisa ser desenhada de acordo com as especificidades de cada região. “Cada país é totalmente distinto, depende muito de como se organiza. É importante que os países não sejam tão ambiciosos no início: não se pode esperar iniciar já com uma grande dimensão de alcance. Mas é preciso começar e ir avançando gradativamente”, ensina. E o pontapé para que um processo desses se estabeleça, é a decisão política. Governantes locais podem fazer a diferença em suas regiões, mas para uma estratégia nacional, o ideal é que a iniciativa comece na presidência.
O envolvimento presidencial também foi fundamental para permitir a implantação de programas bem executados em outros países da América Latina que se inspiraram no modelo chileno (por exemplo, “De zero a sempre”, na Colômbia; e “Uruguai Cresce Contigo”). No Brasil, existem algumas iniciativas positivas, como o Brasil Carinhoso (programa criado em 2012 de transferência de renda da esfera federal para as redes municipais com o objetivo de custear despesas com educação infantil, cuidado integral, segurança alimentar e nutricional de crianças em vulnerabilidade social) e Criança Feliz (programa de visitas domiciliares lançado em 2016, que, até o momento, atingiu 16,5% da meta de visitas às famílias), no entanto, ainda não surtiram efeitos em larga escala.
Para que um programa voltado à primeira infância tenha efetividade e seja aplicado em larga escala, precisa ser visto como prioridade e abraçado como estratégia de desenvolvimento pelo presidente e demais autoridades. Independentemente do resultado nas urnas neste domingo (7), fica a torcida para que os novos representantes da população, de todos os níveis e poderes, entendam a importância dessa causa e trabalhem, desde o início do mandato, em prol dela.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
Portal oferece curso gratuito sobre desenvolvimento da primeira infância
Os primeiros anos de vida afetam uma criança até a vida a adulta e toda a sociedade. Como garantir que todos os meninos e meninas do mundo sejam apoiados em seu desenvolvimento desde o nascimento? É para responder a essa pergunta que a SDG Academy oferece o curso on-line gratuito The best start in life: early childhood development for sustainable development (O melhor início na vida: desenvolvimento da primeira infância para o desenvolvimento sustentável, em tradução livre). As inscrições ainda estão abertas, e as aulas começam nesta segunda-feira (24) e seguem até 3 de dezembro.
A capacitação dura oito semanas e é ministrada por especialistas em primeira infância de instituições renomadas, como a Universidade Harvard, a Universidade de Nova York e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A formação ajudará os participantes a entenderem como se desenvolve o cérebro humano até os 3 anos de idade; como a nutrição afeta o bem-estar da infância à idade adulta; como se constrói um programa bem-sucedido de atendimento à primeira infância. O programa a distância também abordará como a educação, creches e outras políticas públicas afetam o desenvolvimento infantil, além de abordar estudos de caso sobre como fatores como a migração forçada impactam o futuro de uma criança.
As sessões explorarão estudos da neurociência, da sociologia, da antropologia e de outros campos, mostrando como as descobertas científicas afetam o entendimento do desenvolvimento humano durante a primeira infância. Os alunos assistirão a palestras, lerão materiais relacionados, responderão a testes e exame final, além de participarem de fórum de discussão e sessões de perguntas e respostas ao vivo. Os estudantes que completarem com sucesso o curso poderão adquirir um certificado assinado pelos instrutores. As palestras são em inglês, mas legendadas em português e em espanhol.
Compreenda melhor os conteúdos no vídeo:
Público-alvo
O curso é aberto para qualquer pessoa, mas é voltado, especialmente, para alunos de graduação e pós-graduação em educação, desenvolvimento internacional, enfermagem, medicina e outros campos relacionados à primeira infância; professores, trabalhadores da saúde e outros interessados nos fatores sociais e biológicos que afetam as crianças; além de profissionais de desenvolvimento sustentável que desejam entender como ajudar crianças em todo o mundo, incluindo aqueles que trabalham em organizações humanitárias internacionais e entidades sem fins lucrativos que trabalhem com pobreza, nutrição e educação.
Conheça o corpo docente
Jack Shonkoff, professor de saúde da criança da Universidade Harvard, diretor do centro de desenvolvimento infantil
Aisha Yousafzai, professora de saúde global da Universidade Harvard
Hirokazu Yoshikawa, professor de globalização e educação da Universidade de Nova York, co-diretor do centro para crianças Ties
Catherine Tamis-LeMonda, professora de psicologia aplicada da Universidade de Nova York
Confira os módulos do programa
Módulo 1: Introdução
Desenvolvimento da primeira infância para o desenvolvimento sustentável, como estão as crianças do mundo, como a arquitetura do cérebro se desenvolve, o impacto da adversidade e do stress tóxico, resiliência e como promovê-la
Módulo 2: desenvolvimento infantil do pré-natal aos 3 anos
Desenvolvimento de acordo com cultura e contexto, desenvolvimento físico, desenvolvimento cognitivo e percepção, desenvolvimento da linguagem, desenvolvimento social, desenvolvimento emocional e temperamento
Módulo 3: desenvolvimento infantil dos 3 aos 8 anos
Desenvolvimento físico, desenvolvimento cognitivo e funções executivas, linguagem, desenvolvimento socioemocional
Módulo 4: tour pelos programas e setores do desenvolvimento da primeira infância — parte I
Introdução aos aspectos multissetoriais, programas de saúde, programas de nutrição e maternidade
Módulo 5: tour pelos programas e setores do desenvolvimento da primeira infância — parte II
Programas De proteção social, programas de cuidados primários e educação, programas de proteção infantil
Módulo 6: comunidades e situações de conflito e migração
Caso Uganda, programas baseados na comunidade, conflito e migração
Módulo 7: de programas para políticas públicas
Como se cria uma política pública, qualidade, governança e sustentabilidade, financiamento de políticas voltadas para o desenvolvimento da primeira infância
Módulo 8: o futuro — inovações e crescimento
Inovação em desenvolvimento da primeira infância, inovação em todo o mundo, conclusão: o futuro do desenvolvimento da primeira infância
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Saiba mais
A SDG Academy oferece recursos educacionais gratuitos sobre desenvolvimento sustentável a alunos de todo o mundo. Os cursos abordam diversos tópicos relacionados aos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, um conjunto de objetivos e metas adotados pelos estados membros da Organização das Nações Unidas em 2015. É possível tirar dúvidas pelos e-mails da equipe da SDG Academy (sdgacademy@unsdsn.org) e da equipe que promove o curso (ecd@sdgacademy.org).
Falta de creches atrapalha a carreira das mães trabalhadoras e o desenvolvimento do país
A oferta de creches gratuitas e de qualidade tem tudo a ver com o desenvolvimento profissional, social e econômico do país. A falta de local para deixar as crianças atrapalha, ou até impede, que trabalhadores com filhos pequenos — majoritariamente mulheres, pois são elas as que mais se responsabilizam pela prole — se insiram, se mantenham e avancem no mercado. “É preciso ter creche pública de qualidade para todos. Assim, as crianças se desenvolvem melhor e as mães continuam suas trajetórias profissionais. Todo mundo sai ganhando: com mais mulheres trabalhando, a economia cresce”, calcula Bia Nóbrega, psicóloga pela Universidade de São Paulo (USP) com mais de 19 de anos de experiência em recursos humanos. “Existe uma relação direta entre creche e carreira e, claramente, as mães são as que mais sofrem com a falta disso”, afirma Angélica Guidoni, sócia da consultoria Trajeto RH. O problema atinge todas as camadas sociais, mas é mais cruel com as mais pobres.
“As que têm melhores condições financeiras ainda podem pensar e avaliar onde deixar os filhos, com uma babá ou numa creche particular, por exemplo. Têm mais possibilidades de se colocarem à disposição para uma promoção”, pondera a coach e psicóloga. “Já as que não podem arcar com os custos desse tipo de serviço ficam numa situação muito limitada”, compara. As opções que sobram não são as melhores, mas é preciso arranjar caminhos. “Nos bairros mais humildes, existem mulheres que cuidam de quatro a cinco crianças. Outra possibilidade é uma rede de vizinhos: um fica com as crianças hoje, outro depois”, exemplifica Bia Nóbrega. No entanto, dificilmente, a mãe conseguirá sair para trabalhar totalmente tranquila com o bem-estar da criança nesses casos.
Deficit de vagas
Escritora, palestrante e pesquisadora do universo feminino, Alice Schuch afirma que “a oferta de creches é um dos maiores ganhos que o governo pode proporcionar às mulheres, já que a ausência dessa estrutura, agrava muitíssimo o problema do feminino”. A melhor maneira de criar um filho saudável, explica Alice, doutora em educação e gêneros pela Universidad de Desarrollo Sustentable, do Paraguai, é a realização da mãe. “Se ela for frustrada por causa das dificuldades de ter uma carreira, muito provavelmente passará isso para a criança.”
E se o país quiser investir nas próximas gerações, precisa fazer isso desde cedo, nas creches, que devem ser desenvolvidas em termos de qualidade e quantidade, algo que ainda está longe de sair do papel. Uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) é colocar, pelo menos, 50% das crianças de até 3 anos em creches. O primeiro prazo estabelecido para cumprir o objetivo não foi cumprido e, então, adiado para 2024.
Existem mais de 11,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos no país segundo dados de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, há apenas 3,1 milhões de matrículas em creches nessa faixa etária, de acordo com as Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2017, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O Inep não coleta dados de deficit de vagas, mas fazendo a correlação com os números populacionais, apenas 26% das crianças frequentam creches nos três primeiros anos de vida. “No ritmo atual, não alcançaremos a meta nem com investimentos. Num momento de contenção de despesas, isso se agrava ainda mais”, lamenta Heloisa Oliveira, administradora executiva da Fundação Abrinq.
Famílias de três regiões do DF comentam o impacto da falta de creches
Aecione vive com seis filhos, o mais novo com 2 anos. Sem vaga em uma unidade pública, ela não consegue trabalhar
Aecione Pinto de Lira, 45 anos, teve 12 filhos, dos quais seis vivem com ela e o marido, carroceiro, em Planaltina. A família nunca conseguiu apoio de creches. Sem outros parentes no Distrito Federal, a pernambucana que cresceu em São Paulo não trabalha e fica em casa para cuidar, especialmente, do caçula, de 2 anos, mas também dos demais, que têm 7, 9, 11, 12 e 16 anos e frequentam a escola. O primogênito, que não mora mais com ela, tem 31 anos. “Com o fato de não ter creche, você não consegue nem correr atrás de arrumar serviço. É muita falta de responsabilidade do governo”, queixa-se. Nas ocasiões em que procurou trabalho, sentiu o preconceito dos empregadores. “Dizem que criança atrapalha, têm medo de que a gente fique saindo para ir à reunião de escola…” Aecione é beneficiária do Bolsa Família e complementa a renda como revendedora de produtos de venda direta. “Eu sempre fiz faxina também, mas, depois que o menino mais novo nasceu, parei. Após o parto dele, minha saúde não ficou bem”, conta ela, que tem nível fundamental incompleto.
Silvana está satisfeita por ter encontrado alguém de confiança para cuidar da filha
A enfermeira Silvana Alves dos Santos, 32 anos, terminou o curso na Universidade Católica de Brasília (UCB) em junho e, desde então, procura emprego. Ela também faz pós-graduação em urgência e emergência. Nunca conseguiu creche pública e, há algum tempo, deixa a filha, de 1 ano e seis meses, na casa de uma mulher que é paga para cuidar de três crianças nos Jardins Mangueiral. “Ela já ficava lá para eu poder estudar e continuou. São R$ 400 por mês, e ela fica das 7h às 15h”, revela. No começo, Silvana e o marido, que é mecânico numa empresa de veículos a diesel, contrataram uma pessoa para ficar na casa deles. “Era uma conhecida, mas ela teve de sair para fazer tratamentos de saúde”, diz. Foi então que ela começou a procurar creches. “Foi muito difícil, as que eu achava eram muito caras. Até que recebi a recomendação de uma mais em conta, onde coloquei minha filha.”
A experiência durou pouco, porque o estabelecimento mudou para São Sebastião, então, se tornou contramão para a família. “A gente sonha em conseguir uma boa creche pública. Isso fica na cabeça da mãe. Quando você não consegue, isso gera preocupação e frustração. A creche dá mais confiança do que deixar com uma pessoa estranha seu bem mais precioso”, diz ela, que já trabalhou como operadora de caixa.
Sirlene tem dois netos, um de 11 meses e um de 2 anos. Sem creche, a filha Sabrina tem dificuldade de encontrar emprego
A casa de Sirlene Alves de Deus, 39 anos, na Cidade Estrutural, abriga o namorado, os dois filhos e os dois netos dela. “Eu sou a única que trabalha. Meu namorado faz bico, é percussionista e toca aos fins de semana. O grosso das contas sou eu quem pago”, conta a empregada doméstica. “Meu expediente é de segunda a sábado.” Os filhos, Gabriel, 20, e Sabrina Hemily, 17, não estudam nem trabalham. Cada um tem um filho: respectivamente, Miguel, de 11 meses, e Pedro Henrique, de 2 anos. A família não conta com creche para nenhum deles e, apesar de esse não ser o único fator causador, isso dificulta a inserção profissional e os estudos. “A Sabrina nunca trabalhou, com ou sem carteira assinada, mas está procurando emprego. O Gabriel vendia balinha e jujuba no sinal quando era mais novo. Depois que ficou de maior, nunca procurou serviço. Os dois abandonaram os estudos.”
Sirlene acredita que, com creche, a situação seria melhor para as crianças e toda a família. “Fica complicado sem isso, porque eu sustento a casa e não tenho como deixar de trabalhar para cuidar dos meninos. Ganho um salário mínimo, se for pagar uma particular, não teremos o que comer”, desabafa a baiana, que mora no DF desde 1993. “Quem cria o Pedro Henrique mesmo sou eu. A mãe mora perto, mas não ajuda. Durante o dia, quem mais cuida dele é meu namorado”, diz. “Com certeza. Meu sonho é que todos eles trabalhem, até para ajudar a construir a casa. O muro e o banheiro são de tijolos, mas o resto é barraco de madeirite.” O local não conta com rede de esgoto nem água encanada, e a rua não é asfaltada.
Sabrina Hemily completa 18 anos em outubro e passa os dias dividida entre cuidar de Miguel e procurar emprego. A creche mudaria muita coisa na minha vida, especialmente para poder procurar serviço e voltar a estudar.”
A carência de creches no país, segundo especialistas
Vagas só para quem pode pagar
“Nossa maior preocupação em relação ao acesso à creche é que vários estudos mostram que as crianças que pertencem às famílias de mais baixa renda são as que estão fora delas”, alerta Beatriz Abuchaim (foto), gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), que tem como foco a defesa da primeira infância. Ou seja, são as mães desempregadas e em mais complicada situação financeira que não contam com esse apoio. “Não falta vaga para quem pode pagar. Falta para quem não pode. No DF, onde tem muito servidor público e pessoas com renda mais alta, a maior parte das matrículas é na rede particular. Pouco mais de 1% é de fato da rede pública”, completa Heloisa Oliveira, da Abrinq. A colega dela Denise Cesario, gerente executiva da Fundação Abrinq, observa que a falta de acesso pode gerar muitos riscos. “Quando se deixa a criança com um amigo, um vizinho, até um parente, além de não receber estímulos adequados, ela pode estar sujeita a outros perigos, como o de não ser bem cuidada, de ser violentada.” O que não quer dizer, necessariamente, que o atendimento seja adequado em todas as creches.
“Um dado preocupante é que as crianças mais vulneráveis, que vêm de um lar estressor, com pais menos educados, estão fora da creche ou, em algumas regiões do país, estão em creches muito ruins”, alerta a psicóloga, mestre e doutora em educação Beatriz Abuchaim. A boa qualidade da educação infantil (que inclui creche e pré-escola) pode trazer um impacto muito positivo, que perdurará por toda a vida. “Ao mesmo tempo, em ambientes sem interação, que não sejam estimulantes, a gente não vê esse avanço e, às vezes, há até prejuízos”, pondera. “No caso das mães trabalhadoras, esse atendimento é uma necessidade, então a gente tem de lutar para que ele seja bom.” Arranjar um jeito de medir a qualidade das creches, inclusive, é algo em que a FMCSV tem trabalhado. Atualmente, os indicadores do governo levam em conta basicamente a estrutura física, como a presença de berçário, parquinho, banheiro infantil. Eduardo Marino, diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação, observa que o objetivo é tornar possível medir também a qualidade das interações e dos estímulos feitos.
Peso cai sempre nos ombros da mãe
No Brasil e na maior parte dos países, fica com as mães a responsabilidade principal pela criança. “É muito raro o pai faltar ao trabalho para levar o filho ao médico. Isso é muito ruim, porque a sobrecarga é tremenda. O empregador obviamente sabe disso e entende que a mulher terá mais chance de se ausentar da empresa por causa da criança”, aponta Bia Nóbrega.
“Em muitos casos, a própria mãe não pleiteia uma vaga ou desafio profissional por entender que ficaria difícil por causa dos filhos. Dar um jeito significaria colocar o pai na jogada, o que gera desgaste. Então, ela se barra”, percebe Angélica Guidoni (foto), que tem experiência de consultoria de RH em empresas de médio e grande porte, nacionais e multinacionais. Frente às dificuldades de conciliar filhos pequenos e carreira sem creches para todos, não só as próprias mulheres se privam de oportunidades, como também os chefes têm o costume de escolher por elas. Eles não chegam nem a ofertar chances (de promoção ou viagem, por exemplo) às profissionais. “Os gestores pensam: ‘Fulana tem filho pequeno, portanto, não pode’. Só que, às vezes, esse cenário não é real, a trabalhadora daria um jeito. Falta dar a chance de ela decidir.” Fenômeno análogo se repete nas seleções de emprego.
Para Angélica, a falta de universalização do serviço de creche, aliada à concentração das tarefas domésticas e familiares apenas nas trabalhadoras, está por trás da desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. “A profissional tem menos tempo para construir networking. Em vez de sair com os colegas para um happy hour, onde poderia encontrar alguém da direção, volta para casa e para os filhos depois do expediente”, diz. “Esse empobrecimento das relações é supercrítico para o desenvolvimento da carreira e faz com que elas sejam menos cotadas para cargos de chefia. Um reflexo da falta de creche e também da falta da paternagem ativa”, comenta Angélica.
Dividir responsabilidades
Para pleitearem vagas de emprego com serenidade e confiança, as mulheres precisam entender que não estão sós. E num contexto em que há cada vez menos senso de sociedade e paternidade com relação ao cuidado com as crianças, isso se torna muito difícil sem creches. “Não foi à toa que a humanidade começou em tribo. Os filhos eram da tribo, não só da mulher. É complexo ter um filho só para você e ser o único responsável num mundo masculinizado, onde a maternidade é o auge do feminino”, afirma Angélica Guidoni, especialista em constelações sistêmicas pela Faybel. A subsecretária de Promoção de Políticas para Crianças e Adolescentes do Distrito Federal, Perla Ribeiro (foto), chama a atenção para a importância de desvincular a imagem do zelo e da criação de filhos como algo exclusivo da mãe, até porque ela não os gera sozinha. “Cuidar das nossas crianças não é (ou não deve ser) o cuidado de um só. É preciso de uma rede em que cada pessoa tem o seu papel. O pai é muito importante para o desenvolvimento infantil, complementando o trabalho da companheira”, destaca.
Os comportamentos atuais geram, na maior parte das mulheres, a sensação de desamparo, a ideia de que precisam dar conta de tudo sozinhas. Perla salienta o papel social e do Estado para amenizar essas situações. “A criança tem de ter o cuidado da família — e pensando de modo extenso, de todos os membros. Mas também é responsabilidade do Estado e da sociedade cuidar da criança, garantindo-lhe direitos básicos e fundamentais, como vida, educação, saúde, alimentação saudável, espaços lúdicos. Precisamos resgatar princípios comunitários de cuidado com o outro”, diz.
Primeira infância
OEI seleciona três municípios para projeto-piloto
Atenta aos cuidados necessários à primeira infância, a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) planeja criar projetos de acolhimento para crianças de zero a três anos de idade. “Dentre as prioridades, estão a gestão pedagógica e administrativa, além da gestão de projetos de infraestrutura”, adiantou o diretor da OEI, Raphael Callou. “Discutir soluções na primeira infância pode transformar o país”, acrescentou o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Sílvio Pinheiro.
Presente na abertura do seminário Diálogos da Ibero-América: Primeira Infância, ocorrido na última quarta-feira (5), Silvio Pinheiro ressaltou que a iniciativa da OEI de discutir soluções para a primeira infância é mais do que necessária. Segundo Sílvio Pinheiro, a gestão atual do FNDE encontrou obras inacabadas por conta de dificuldades legais de prorrogação de prazos. “Trabalhamos por oito meses com o TCU e CGU, buscando uma nova regulamentação que permitisse que estados e municípios repactuassem com o FNDE, para ganhar prazo e concluir creches em construção. Com isso, reduzimos o número de obras inacabadas e ampliamos os prazos das que estão em andamento.”
16 mil crianças de até 3 anos estão na fila por creche pública no DF
Apesar de aumento de cerca de 6 mil vagas desde 2015, no momento, cerca 16 mil crianças de até 3 anos estão na fila por vaga em creche pública no DF, segundo a Secretaria de Educação do Distrito Federal (Seedf). Na faixa etária de 4 a 5 anos, não há demanda reprimida por pré-escola. Entre as 29 mil crianças que frequentam creches no Distrito Federal, a maioria (28.101) o faz na rede particular, com base nas Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2017 do Inep. As 1.004 que usam o serviço público estão matriculadas em 18 unidades do governo. Em nota enviada por e-mail, a Seedf informou que “conta com 14 creches públicas, 50 centros de ensino de primeira Infância (Cepis) e 58 instituições conveniadas, atendendo 15.287 crianças de 0 a 3 anos e 47.203 de 4 a 5 anos”.
Já na rede particular, de acordo com a pasta, são 319 unidades, com 15.944 crianças de 0 a 3 anos e 19.849 estudantes de 4 a 5 anos. As divergências entre os números da secretaria e os do Inep se devem ao fato de a pasta distrital usar como base o Censo Escolar do DF. Há também diferenças na interpretação dos dados. As redes conveniadas citadas pela Secretaria são formadas por instituições privadas. O número de creches públicas aparece como 18 nas informações do Inep, porque o órgão considerou unidades do tipo e também quatro escolas, em Samambaia e em São Sebastião, que oferecem turmas de creche.
Durante o Seminário Diálogos da Ibéro-América: Primeira Infância, promovido na última quarta-feira pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), a primeira-dama do DF, Márcia Helena Rollemberg, disse que o o atual governo construiu 27 creches e têm mais três para serem inauguradas.
A contribuição das empresas
Na percepção de Bia Nóbrega, é cada vez mais comum que os empregadores se preocupem com as condições de qualidade de vida das mães, já que isso afeta o trabalho. O benefício mais comumente oferecido é o auxílio creche. São poucas as firmas que contam com berçário ou creche no ambiente corporativo. “A possibilidade de home office também tem sido mais frequente.” A valorização da diversidade, acredita ela, está em alta “As empresas estão se dando conta de que, ao abrir mão de ter mães na força de trabalho, abrem mão de melhores resultados”, diz. Angélica Guidoni, da Trajeto RH, observa, porém, que isso está mais no discurso do que na prática.
“A gente ouve falar mais em equidade, mas não há ações novas”, aponta. Para Alice Schuch, há até retrocessos. “As empresas valorizam diversidade e se interessam pelo bem-estar dos funcionários, mas, com o atual nível de desemprego, poucas estão fazendo algo de fato para dar mais apoio às mães”, avalia. O resultado é que as firmas acabam perdendo talentos.
Falta de opções leva ao trabalho autônomo
Pesquisa do site de empregos Catho com 5.120 pessoas revelou que a quantidade de mulheres que chegam a deixar o trabalho (30%) após a chegada dos filhos é cerca de quatro vezes maior que a de homens (7%). Entre as entrevistadas, 8% conseguiram retomar a carreira em até seis meses, enquanto 31% levaram mais de três anos ou não retornaram. Entre os pais com hiato na carreira por causa dos filhos, 33% voltam ao mercado em menos de um semestre. Entre as mães que ingressaram em empresas após essa pausa, 60% avaliam as perspectivas profissionais como ruins ou péssimas. As creches (ou a falta delas) têm tudo a ver com esses resultados. Em certos casos, o cuidado infantil sai tão caro que pagar por uma creche não compensa dependendo do salário. “Tendo em vista o que gastavam para ir e vir e ainda custear creche, não são poucas as que param de trabalhar por perceberem que é mais vantajoso, analisando até a qualidade de vida e a segurança do filho”, diz Angélica Guidoni.
“A qualidade das creches anda muito ruim também, então, considerando tudo isso, não é raro a mãe ficar insegura e ‘preferir’ ela mesma cuidar”, observa. “E não é que a mulher não possa ser dona de casa. O problema é quando ela se sente obrigada a isso por não ter com quem deixar o filho”, completa Alice Schuch, mestre em educação pela Universidad del Mar, no Chile. “E se ela fica muito tempo afastada do mercado, fica bastante difícil voltar.” Em casa, bicos ou trabalho autônomo são as possibilidades que surgem para não ficar totalmente parada.
Planejamento familiar
A necessidade de creche é ainda mais gritante em casos de gravidez na adolescência, em que a mãe precisa de um estabelecimento do tipo não só para trabalhar, mas também para prosseguir os estudos. Quando essa situação acontece aliada a problemas financeiros, os desafios se agigantam. A superintendente do Instituto da Infância (Ifan), Luzia Laffite, sugere que os governos, especialmente os locais, em nível municipal e distrital, adotem postura menos passiva com relação a isso. “A rede formal de apoio tem condições de fazer o mapeamento de mães e famílias de risco (não só por gravidez na adolescência, mas também outras situações)”, afirma. “É preciso fazer busca ativa desse grupo. Às vezes, são pessoas que não querem fazer pré-natal nem participar de grupo de mães, pois têm vergonha de sua miséria (não só econômica)e se excluem — ou são excluídas — da família”, observa.
A psicóloga ressalta que os níveis de gravidez na adolescência são muito altos no país. “E, se elas não contam com apoio de ninguém da família, o Estado precisa prover”, defende. Para a psicóloga Angélica Guidoni, é de suma importância também o trabalho de prevenção, que deve começar nas escolas, de forma sistematizada. Mesmo porque quase metade das gestações não é planejada e, a cada cinco bebês no país, um tem mãe adolescente. Os dados são do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “Planejamento familiar, educação sexual, educação financeira deveriam ser matérias de ensino médio — e também do ensino superior”, diz Guidoni.
Três perguntas para
A falta de um sistema universal de creches gratuitas e de qualidade atrapalha muitas mulheres a voltarem ao mercado de trabalho?
É fundamental que as mães tenham com quem deixar seus filhos para que possam retornar ao mercado de trabalho, já que, socialmente, ainda são vistas como únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos nos primeiros anos de vida, embora essa seja uma visão ultrapassada e que, felizmente, vem mudando pouco a pouco. Essa falta de suporte — e a questão da disponibilidade de creches é uma delas — desencoraja, dificulta e inviabiliza o retorno da mulher ao mercado de trabalho formal.
O estresse de ter de deixar o filho com algum parente, vizinho ou conhecido pode prejudicar o desempenho no trabalho?
Deixar o filho para retornar ao trabalho, independentemente de quem cuidará da criança, seja escola, creche, parentes, seja rede de vizinhos, é um processo geralmente difícil. E, principalmente, no primeiro momento em que acontece essa “separação”, é normal a mãe se sentir dividida. Porém, com um respaldo adequado e cercado de pessoas de confiança, automaticamente, a mulher terá mais tranquilidade no retorno ao trabalho.
Empresas e órgãos públicos que oferecem benefícios, como creche no local de trabalho e auxílio-creche cumprem papel importante?
Sem dúvida. Essa iniciativa é importante e é uma das formas mais eficazes de apoio às mulheres no retorno ao trabalho. Torna-se um benefício para mães, que enxergam uma possibilidade de ficarem próximas da criança durante o expediente, otimizando o tempo e se antecipando a imprevistos inerentes à maternidade.
Você já ouviu falar e sabe o que é primeira infância? Trata-se do período que vai do início da vida, ainda no útero materno, até os 6 anos de idade, uma fase fundamental para o desenvolvimento das plenas capacidades de qualquer ser humano.
Subsecretária de Promoção de Políticas para Crianças e Adolescentes do Governo de Brasília, Perla Ribeiro, acredita que ainda há muito desconhecimento sobre essa etapa. “As pessoas, em geral, não têm compreensão da importância da primeira infância, para olhar a criança como sujeito de direitos”, aponta.
“Como um bebê não pode se expressar por meio da fala, muitos acabam não percebendo que é nessa fase que se desenvolve o maior potencial cognitivo de uma pessoa”, afirma. E é justamente para despertar a atenção do público para esse começo da vida e informar com profundidade sobre o assunto que o Correio Braziliense dá início, hoje, a um blog acerca da temática.
Afinal, é um assunto que merece mais atenção de todos os setores da sociedade. O Blog da Primeira Infância será atualizado com reportagens, pesquisas e novidades sobre os primeiros anos do desenvolvimento infantil periodicamente. Então, seja muito bem-vindo e acompanhe a página para saber mais sobre e descobrir o universo da primeira infância!