O carnaval que começa marca o enterro das marchinhas. Ou melhor: mais uma tentativa. É hora do piseiro, me dizem. Trata-se de uma contrafação da pisadinha que, por sua vez é uma contrafação do xote, apoiado em teclados eletrônicos, letras de mau gosto, erros de português, palavrões à granel e com passos arrastados e mãos coladas no corpo como um beque de time de várzea.
E sai o féretro da expressão “pular carnaval”. Está mais para arrasta-pé, que era mais comum nas festas juninas, em terreno de chão batido e em volta da fogueira.
Pois a previsão é que o piseiro tome conta dos bailes, com pérolas musicais como Roça em Mim (“Eu chamei ela pra roça e ela me pediu assim/ Roça, roça em mim/ Tira o chapéu e a bota e me bota gostosim”), Ai Papai (“Macetei/ Foi um tal de vuco, vuco, tá maluco, quer replay”) e Bombonzinho (“Na cama, cê tem talento, cê manja dos movimento/ … Pena que cê é pra frente, tem uma porrada de gente/ Que cê pega além de mim”).
Ou seja, saem a malícia inteligente, as críticas sarcásticas e o humor esperto e entra a safadeza explícita, pura e simples. Uma troca digna dos novos tempos.
De marchinhas ninguém quer saber mais. Nascidas no início do século passado aproveitando o ritmo binário das marchas portuguesas, com elementos do incipiente jazz norte-americano, embalaram os carnavais por décadas, fazendo foliões girarem nos salões e cantarem desregradamente pelas ruas. Hoje sobrevivem graças aos bailes da saudade para foliões de mais de 80 anos de idade.
Sem contar que muitas das marchinhas estão condenadas pela obtusidade do pensamento chamado de politicamente correto que muitas vezes simplesmente inverte o preconceito. Índio quer apito? A cabeleira do Zezé? A cor da mulata não pega? Mulata bossa nova cheia de fiu-fiu? A pipa do vovô não sobe mais? Nada disso pode mais.
São temas cancelados. Censurados, melhor dizendo, por uma sociedade que vem se esmerando na hipocrisia.
E pensar que o carnaval brasileiro nasceu como uma válvula de escape para a dureza do dia a dia e como forma de distensão das rígidas normas sociais. Era um tempo, como dizia a marchinha, em que eram “três dias de folia e brincadeira” que acabavam na quarta-feira. Foram esticando até que hoje o carnaval não tem mais muito sentido no calendário.
Muitos rapazes não esperam mais o período momesco chegar para usar vestido, batom e quem sabe o que mais o quê, sequer admitindo serem chamados de rapazes. As marchinhas – como as fantasias – faziam a subversão do carnaval. Davam o tom de crônica política e de costumes de cada época; hoje, quando todo mundo tem que fingir que acha tudo normal, não cabe mais, até porque o vulgar e o clandestino fazem parte do cotidiano.
Vale lembrar o velho samba de Gonzaguinha: “tudo vai bem, tudo legal/ Cerveja, samba e amanhã, seu Zé/ Se acabarem com o teu carnaval?”
Mas enquanto houver marchinha, haverá carnaval. Com ou sem piseiro.
Publicado no Correio Braziliense em 17 de fevereiro de 2023
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