Solidariedade na rua

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A confusão se via de longe. Pelo menos uma dúzia de micos apareceram em questão de minutos, descendo das árvores, passando pelos fios ou andando pelo chão. Guinchavam muito e não era preciso consultar o Muama Enence, esse tradutor eletrônico instantâneo de diversas línguas, para saber que eram expressões de desespero, pedidos de socorro e atenção.

No meio da rua, movimentada via entre quadras, jazia um deles. Havia sido atropelado. Não se sabe se caiu do fio que cruza o local ou havia se arriscado a ir pelo chão mesmo – era cedo, o asfalto ainda não estava quente –, mas havia sido pego por um carro; e o motorista não parou para prestar socorro.

Os micos perderam a noção do perigo. Vendo o companheiro ali – o soinho ainda se mexia, mas não tinha forças para levantar – invadiram o asfalto numa algazarra sem tamanho, que chamou a atenção dos humanos que passavam pelo local, caminhando, correndo ou até dirigindo.

Quando se trata de bicho, humano é muito solidário. Se tiver um gatinho, um cachorrinho ou um passarinho envolvido, cria-se uma rede compromissada para ajudar e, se possível condenar outro humano – agora tem até aplicativo para ajudar bichos abandonados pelos donos. Um cínico poderia concluir que os orfanatos seriam mais bem cuidados se em vez de crianças guardassem bichinhos.

Pois alguém mais solidário logo se arvorou de guarda de trânsito, impediu a circulação de veículos; outros se aglomeraram no local do acidente – mas não deu tempo de aparecer um camelô vendendo perfume barato. Logo uma mocinha parou o carro e, ainda com a chave na ignição, desceu e se apresentou como veterinária. Era um mico de sorte.

A moça trazia uma toalhinha na mão, onde colocou o animal, dizendo que cuidaria dele. E enquanto levava o atropelado para o carro passou o número do telefone para uma senhora, que rapidamente registrou no celular, ao mesmo tempo em que dizia que ia rezar para tudo dar certo. A mocinha ainda teve tempo de dizer que o estado era grave.

O mico foi levado e os outros macaquinhos continuaram guinchando, mas desta vez não era possível traduzir – havia um desespero evidente. A dispersão das pessoas só aconteceu depois que, claro, criaram um grupo de whatsapp para que todos fossem informados nos eventuais boletins veterinários do bichinho, que felizmente continuava sendo chamado de mico, sendo poupado de um apelido ridículo qualquer.

Os outros símios se afastaram da rua, mas ficaram das árvores próximas, numa vigília que durou dias. Brigas de gangues de soinhos são comuns ali; são arengueiros, tanto quando os homens. Mas naqueles dias houve uma trégua entre as facções. E diminuíram os guinchos que funcionam para que se reúnam, mas também de apelo para conseguir uma fruta.

Quatro dias depois do acidente que mobilizou a vizinhança, veio a notícia alvissareira: o miquinho estava bem, teve alta e seria liberado. Pelo telefone, marcaram hora de devolver o macaquinho para a natureza, numa celebração. Foi o bastante; parei de tentar entender os humanos, bicho esquisito demais.

Publicado no Correio Braziliense em 22 de novembro de 2019

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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