A culpa é da colocação das mesas, muito próximas, e não do ouvido comprido. As duas mulheres já haviam se servido e, antes mesmo de tirar os talheres do saquinho de papel, começaram a conversar. Não era um papo barato, como se podia notar pelo semblante fechado das duas; havia uma crise ali – não a crise de todos nós, com inflação, demissão, estagnação, decepção e outros aumentativos casuais. Era um drama particular e, portanto, mais grave.
– Me separei porque descobri que ele é gay. Imagina: cinco anos de casada e eu não sabia de nada… – disse a mais loura. – Agora ele vem com essa conversa. Cafajeste.
Por mais que eu tentasse me concentrar no filezinho ao molho madeira à minha frente, não havia como desligar o ouvido. Cafajeste, convenhamos, não é um adjetivo que a gente ouve todo dia. Até porque me pareceu que estava no contexto errado.
Pra mim, cafajestes eram machões de antigamente, tipo Jece Valadão, Carlos Imperial; para definir um camarada que saiu do armário, confesso, foi inusitado.
A conversa seguiu. A menos loura insistia em saber detalhes, desceu a minúcias sórdidas, que não ficam bem numa página de jornal; queria saber se ele já tem namorado, se era o de cima ou o de baixo, se ela viu, se eles se beijam – parecia uma repórter de revista de fofoca.
A mais loura mantinha a indignação. “Se ainda fosse com uma mulher”, exclamou, um tom acima. Foi demais pra mim. Engoli a comida e me levantei antes que tivesse que dar alguma opinião.
Já no carro, ligo o rádio e a locutora estava indignada porque os responsáveis pelos filmes de James Bond admitem que o agente secreto mais libidinoso do império britânico possa ser negro; gay não. “Absurdo”, ela disse.
Na minha cabeça torta fiquei lembrando Ursula Andrews, Halle Berry, Sophie Marceau e outras Bond girls que dividiram lençóis e Martinis com 007 e imaginei como seria um pesadelo trocá-las por rapazes de peito nu que preferem suco de kiwi.
Mudo de estação e fico sabendo que Ivan e Sérgio se casaram. Era um resumo da novela que acabou sem que eu tivesse visto um capítulo sequer.
Mais tarde, abro o computador e pula a notícia: Marvel exige que o Homem-Aranha do cinema seja caucasiano e hetero. Estranho, porque numa das séries em quadrinhos, o herói é afro-descendente (e no desenho animado em cartaz renderam-se à melanina). E quem beijou a Kirsten Dunst até de cabeça para baixo tem crédito no mundo hetero.
Na estante, o livro Quem Samba tem Alegria sustenta que Assis Valente, compositor de alguns dos maiores sucessos de Carmen Miranda, não era homossexual, como corria à boca solta. O jornalista Gonçalo Junior garante que os problemas que levaram o compositor a tentar o suicídio cinco vezes antes da sexta vez fatal foram causados pela cocaína.
E no jornal aparece o bas-fond envolvendo Mário de Andrade com a carta que escreveu a Manuel Bandeira, comentando sua “tão falada (pelos outros) homossexualidade” e afirmando que sempre se portou com “absoluta e elegante discrição social”.
E eu achando que a crise ia causar a impotência da sociedade.
Publicado no Correio Braziliense, em 5 de setembro de 2015
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