Desde que encheram as estradas de pardais e buracos, desisti de vez de viajar de carro. Mas dias atrás peguei uma estradinha; nada muito cumprido, pista boa, algum movimento. Mas senti falta de algo que costumava me divertir quando era um motorista mais contumaz: as frases nas carrocerias dos caminhões.
Quando menino meu pai me desfiava a contar o número de fenemês que eu conseguia ver na estrada; era uma forma de diminuir a excitação causada pela viagem e pelo pouco espaço que havia na Kombi 1959, originalmente marrom escura, repintada de azul e branco. Fenemê, meus jovens, eram caminhões fabricados pela Fábrica Nacional de Motores (FNM), nos primeiros tempos da indústria automobilística brasileira.
Bastou começar a ler melhor para mudar de distração. A moda de criar frases espirituosas para escrevê-las na carroceria, soube depois, veio da Argentina, seguindo a tradição do fileteado, a colorida arte dos Hermanos que enfeitava carroças e faz, por exemplo, a alegria do Caminito, em Buenos Aires. Um avô do grafite.
Nos caminhões havia um pouco de filosofia (“com os pneus, vou marcando os caminhos do meu trabalho”), poesia (“com teus olhos me ilumino”) e muito humor (“pardal que acompanha joão-de-barro vira ajudante de pedreiro”).
Pode ser falta de sorte, mas nos 100 quilômetros que rodei vi vários caminhões, mas nenhuma frase. Acho que os motoristas autônomos perderam a graça e as empresas não permitem macular suas marcas com frases melhores que os slogans delas (nem mesmo o imbatível “o mundo gira e a Lusitana roda”, que marcava a tradicional transportadora).
No passado recente havia um verdadeiro compêndio da vida sobre rodas: “Mais perigoso que cavalo na pista só burro na direção”, “seja paciente na estrada para não ser paciente no hospital”, “não me siga: estou perdido”, “não xingue o caminhoneiro, ele pode ser seu pai”, “a velocidade que emociona é a mesma que mata”.
Na terra sem freio das estradas, havia muito de misoginia; hoje muitos caminhoneiros seriam enquadrados numa dessas leis antitudo: “caminhoneiro que tem mulher feia viaja tranquilo”, as mulheres perdidas são as mais procuradas”, “mulher é como remédio: agite antes de usar”, “em casa que mulher manda até o galo canta fino”, “mulher é como relógio: depois do primeiro defeito nunca mais anda direito”, “mulher feia e morcego só saem à noite”, “marido de mulher feia só acorda assustado”. Mas ninguém apanhava tanto quanto as sogras: “aqui jaz minha sogra: descanso em paz”.
Era também um espaço para a sabedoria popular: “cada ovo comido é uma galinha perdida”, “direito tem quem direito anda”, “calúnia é como carvão: quando não queima, suja”, “quem madruga fica com sono o dia todo”, “nas curvas da vida, entre devagar…”
E muito exploravam o absurdo: “alegria de poste e ficar em mato sem cachorro”, “rico tem veia poética, pobre tem varize”, “sou um eu a procura de um tu para sermos nós”, “malandra é a pulga que espera comida na cama”. E alguma infâmia: “não sou mágico, mas vivo nesse truck.
As estradas ficaram sem graça.
Publicado no Correio Braziliense, em 22 de março de 2019
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