A memória vai sendo embotada com o tempo – o disco rígido está cheio, dizem – mas tenho quase que certeza que o nome dele era Samuel. Gerente da leiteria (note-se que é de um tempo em que havia leiterias) e, com o sotaque luso ainda muito forte, fazia força para não ser confundido com o português da piada. Gostava de provérbios.
(Sim, já frequentei uma leiteira, que ficava na frente da maior banca de jornais da cidade, de propriedade de um italiano, que chamavam de Nino (ou Nico…) e que, ao contrário do luso, não fazia questão nenhuma de se passar por inteligente. Ou educado. Era um carcamano mal-encarado como os que a gente via nos filmes.)
Samuel adorava conversar com a estudantada. E passava cultura em forma de provérbios, aforismos, adágios, apotegmas, anexins, parêmias, ditos – o que seja –, que têm a capacidade de resumir uma história inteira numa única frase.
Erasmo de Rotterdam e Aristóteles anotavam as frases colhidas do populacho. E nem é preciso buscar este tipo de sabedoria das páginas da Bíblia; basta conversar com um matuto esperto que ele tem sempre o que dizer, em qualquer situação.
“Qualquer um tira o saci da garrafa; quero ver quem põe”, “Na cidade do saci, uma calça veste dois”, “Sapo não pula por boniteza, mas por necessidade”, “Não tinha com o que se apoquentar, comprou um leitão”, são alguns dos meus favoritos, entre os matutos.
Há provérbios que são tão repetidos que não têm mais graça: “O barato sai caro”, “Não se chora o leite derramado”, “O bom filho a casa torna”, “Os últimos serão os primeiros”. Não carregam mais sabedoria; óbvios, gastos pelo tempo.
Provérbios não podem ser ditos com entonação normal, exigem alguma solenidade, uma voz mais empostada e uma cara de coruja sabida. Senão correm o risco de se perderem na tradução – mesmo que seja em português.
O Samuel da leiteria explorava provérbios lusos, alguns tão marcantes que sobreviveram na cachola. “Visita sempre dá prazer. Senão quando chegam, pelo menos quando partem”, dizia. Outro muito repetido, ainda carente de tradução para mim, era “mal de muitos, consolo é”.
Outros: “Quando Deus quer, água fria é remédio”; “bem mal ceia quem come de mão alheia”, “não gozes com o mal do teu vizinho, porque o teu vem a caminho”.
Meu avô também repetia provérbios como mantras: “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”, era um de seus favoritos. Ou “para quem não quer, tem muito”, “mais vale um gosto do que seis vinténs” e “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Já que ninguém mais quer saber de livros, quem sabe os provérbios incutam alguma ciência no mundo? Dá menos trabalho. E nesses tempos de beligerância interminável – interna e externa –, em que o respeito tem valido muito pouco, mesmo que não seja em adágios, é preciso resgatar alguma sabedoria, ainda que seja preciso pegar frases emprestadas, como a de Benjamin Franklin: “Nunca houve uma guerra boa, nem uma paz ruim”.
Publicado no Correio Braziliense em 12 de março de 2023
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