Por 418 anos o Brasil admirou muitas pessoas, mas não havia ídolos. Nem desses que duram quatro minutos e meio, muito menos os mais duradouros. Em 1918, o futebol era incipiente, assim como a música popular; o rádio só apareceria cinco anos depois e televisão não tinha nem em filmes de ficção científica, embora esses existissem desde 1902, quando foi lançado Viagem à Lua, de Georges Méliès.
Celebridade então era Ruy Barbosa, autor de frases que fariam muito sucesso hoje, como aquela que diz: “Toda a capacidade dos nossos estadistas se esvai na intriga, na astúcia, na cabala, na vingança, na inveja, na condescendência com o abuso, na salvação das aparências, no desleixo do futuro”. Embora celebridade, ninguém nunca quis saber como ele perdeu a virgindade e nem se foi à ilha de Caras.
O primeiro ídolo brasileiro surgiu na música popular, há 100 anos, pouco depois do lançamento dos primeiros discos e reinou sem contestação por 34 anos. Foi o primeiro dos muitos soberanos da música brasileira, o rei da voz, Francisco Alves.
O centenário está passando batido; mas foi entre abril e maio de 1918 que ele começou a cantar profissionalmente, numa companhia de entretenimento e no Circo Spinelli. Dois anos depois, seria contratado para fazer as primeiras gravações; até morrer, entraria nos estúdios mais 1.376 vezes. Ninguém gravou tanto.
O Brasil de hoje não tem espaço para Francisco Alves. Sua voz já está nos serviços de streaming como o Spotify, onde é seguida por míseros 7.379 ouvintes mensais. Mas faz parte de um Brasil que não quer mais se ouvir, que renega a própria história e namora com ameaças, à espera de um milagre que não virá sem esforço.
Foi Francisco Alves quem fez a transição das gravações mecânicas – que exigiam do cantor um fôlego de nadador e, dos músicos, tônus de halterofilista – para os registros elétricos. E assim introduziu a sutileza na música brasileira, explorando registros tão variados que ninguém, 66 anos depois de sua trágica morte, se arvorou em substituí-lo. E desmentiu o ditado: depois do rei morto, não houve rei posto.
A vida do cantor seria um prato cheio para as revistas de fofoca de hoje. Era um contumaz comprador de sambas – algo normal naqueles tempos –, tinha fama de unha-de-fome e também por ter sido casado com uma moça que trabalhava no baixo meretrício e se recusou deixar o ofício, mesmo depois da boda, por gostar da “vida alegre”.
Mas sua mais rica herança foram os sambas, marchas, foxes, valsas, maxixes e tangos para os quais emprestou a voz. Gravou sambas de Sinhô – incluindo as inaugurais O Pé de Anjo e Fala Meu Louro, essa uma brincadeira algo indelicada com a derrota de Ruy Barbosa para Epitácio Pessoa nas eleições presidenciais – Ismael Silva, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso.
Ainda assim, está a um passo do esquecimento. Teremos mais uma chance. Para quem gosta de datas redonda, dia 19 de agosto podemos comemorar os 120 anos de nascimento do rei que não fez sucessor.
Publicado no Correio Braziliense, em 3 de junho de 2018
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