Romancista pode inventar o que quiser; mundos paralelos, universos multidimensionais, personagens oníricos, cenas mirabolantes. Jornalista precisa ser muito menos criativo; deve descrever fatos, se ater a obviedade da notícia e, ainda que vá além do acontecimento, tem que manter os pés no chão – ainda que, para atrair o leitor, use truques literários; mas nada que vá além de uma frase de efeito ou palavras provocadoras. São, portanto, pólos opostos de um mesmo ofício, aquele que trata de colocar palavras no papel imaculado.
Ou não.
Talvez a obra mais fantástica da vida de Gabriel García Márquez seja a comprovação que um escritor objetivo – como o que escreveu o detalhado Notícias de um Sequestro – pode habitar a mesma cabeça do delirante ficcionista de Cem Anos de Solidão. Mas algumas vezes realismo e fantasia se misturaram, conforme ele próprio admitiu, de maneira inversa.
Na ficção cabe jornalismo; nas notícias, ficção é simplesmente mentira. Ou não.
Na colisão dos universos de García Márquez, notícias inventadas fizeram parte do portfólio do jornalista, criador da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano (FNPI), em 1994. Ele admitiu ter inventado um protesto numa cidade do interior da Colômbia para escrever uma matéria de jornal e, em outra ocasião, até ter criado um poeta – fictício autor de cinco livros – para escrever uma coluna.
Não se pode comparar pecadilhos – assim seriam? – do escritor com, por exemplo, as peripécias de Jayson Blair, jornalista americano que enganou editores e leitores do vetusto The New York Times publicando uma série de artigos falsos ou plagiados, desmascarado em 2003. Ainda que sejam, ambos, farsantes.
A melhor obra de García Márquez está mesmo na ficção; é assim que será lembrado enquanto a palavra escrita tiver algum valor. Mesmo que preferisse ser reconhecido como jornalista, sua contribuição no campo foi muito mais teórica do que prática, até pela dubiedade de algumas posições.
García Márquez disse que todos os seus livros têm rigor jornalístico. Não há dúvida que ele fez obras a serem esmiuçadas por qualquer um que pretenda insistir no que ele chamava de “a melhor profissão do mundo”, caso de Notícias de um Sequestro e Relato de um Náufrago. Mas ele tinha uma visão bem ampla da definição de jornalismo.
O livro Gabo Periodista, lançado pela FNPI e ainda sem tradução para o português, disponível em e-book, procura condensar o pensamento do escritor sobre o ofício. É uma coletânea de sua relação com a notícia e com os jornalistas, a quem por muitas vezes evitou, preferindo ele mesmo contar sua história ao vê-la narrada por outros.
García Márquez disse que todos os seus livros nasceram de histórias reais, às quais ele adicionou o delírio. Mas, mais uma vez: se é verdade que pode haver uma ficção jornalística, com o aproveitamento de fatos reais para digressões, o contrário é impensável.
Para simplificar: jornalismo pode ser feito com arte, mas não é arte.
Tudo isso poderia ser muito útil para o Brasil de hoje, onde a ficção tem engolido a realidade com uma voracidade famélica. Mas será que a verdade ainda interessa a alguém?
Foto: cena do filme Crônica de uma Morte Anunciada
Publicado no Correio Braziliense em 15 de novembro de 2020
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