Querem calar o samba

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Desde a mais tenra infância, o samba foi perseguido pelos homens da lei. Sambistas eram acossados, combatidos e presos; acusados – às vezes até injustamente – de malandragem. Parece passado; afinal, hoje são artistas reconhecidos, reverenciados, alguns até ricos. Mas a perseguição não parou. Só que agora vem dos ditos cidadãos de bem.

Imaginem, senhores e senhoras, que querem calar a Aruc, a mais tradicional e vitoriosa escola de samba do DF, filha dileta da Portela, que está completando 60 anos no próximo dia 21 de outubro. A agremiação é a alma do Cruzeiro, bairro seminal da nova capital, para onde foram transferidos os funcionários mais humildes das repartições, alguns deles sambistas.

Mas a turma anda ouriçada, até porque ano passado não teve desfile; e a comunidade quer fazer festa, sair pelas ruas do bairro, exibindo sua premiada bateria, suas porta-bandeiras e mestres salas, alas engalanadas, adereços e tudo que faz o carnaval. Se possível, mostrar os troféus conquistados e o estandarte da grande campeã em 31 desfiles.

Mas está difícil. Por mais incrível que possa parecer, o samba está amordaçado por uma decisão judicial que, embora liminar, calou os tambores, apitos, gogós e agogôs da escola. Hoje, tudo tem que ser feito em silêncio por capricho de um morador que chegou ao bairro bem depois da escola, comprou um imóvel e se achou no direito de decretar a lei do silêncio e acabar com a folia. O mais incrível é que encontrou um juiz que concorda com ele.

O cidadão que tenta calar o batuque repete o que leitores dos jornais cariocas do início do século passado fizeram, denunciando as rodas e pedindo providências às autoridades na seção Reclamações. Além disso, João da Baiana, um dos três pais fundadores, contou ter sido parado várias vezes na rua por carregar um… pandeiro (que só deixou de ser ameaça quando o senador Pinheiro Machado, fã do samba, escreveu uma dedicatória no couro).

O samba tem um pouco de culpa nessa história; era como cantava Jorge Veiga, com os versos de Wilson Batista: “Meu chapéu de lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso, eu passo gingando provoco e desafio, eu tenho orgulho em ser vadio”. Era mau exemplo, segundo as autoridades.

O mesmo Wilson Batista, em parceria com Ataulfo Alves, teve que trocar a letra de Bonde São Januário para satisfazer Getúlio Vargas. E Cyro Monteiro cantou; “Quem trabalha é que tem razão, eu digo e não tenho medo de errar”. A letra original era mais uma ode à malandragem: “O Bonde São Januário, leva mais um sócio otário, só eu não vou trabalhar”.

A questão fundamental no caso da Aruc é o marco histórico. Se a escola está no mesmo local há 60 anos, com sua bateria esquentando as tardes e noites do bairro, trazendo grandes espetáculos de sambistas consagrados, como é que um recém-chegado se acha no direito de calar toda a comunidade para dormir em silêncio? Ou alguém que tem medo de alma penada vai morar do lado do cemitério?

Publicado no Correio Braziliense em 10 de outubro de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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