Quem precisa de prosa?

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Começa mais um ano em que a prosa dos políticos vai tentar dominar nossas cabeças. É da prosa que vem o proselitismo, os prosélitos, o sectarismo e as discussões chatas, num tempo em que não basta mais expor argumentos; investem em lavagem cerebral. É tempo de eleição, quando vaidades afloram. Tempo bom para o tinhoso fazer alistamento.

A prosa é um mal necessário, mas a poesia é o que nutre, que incute ideias de forma concisa, além de aliar razão e emoção, criando uma espécie de húmus para o pensamento. É o que faz falta nessas discussões áridas, obtusas e míopes.

Muita gente faz poesia. São incautos. Acham que poemas são feitos de palavras, essas mesmas que abarrotam os dicionários, com raízes catadas em várias línguas.

Eu tenho juízo. Mexo com palavras, mas não mexo com poesia; isso é coisa para gente grande. São os poetas que mostram o que vai pelo mundo, o que vai pelo universo particular e universal deles – e o que o mundo precisa ouvir. Ouça Climério Ferreira: “O poema parece um barco de papel/ Naufragando no esgoto à margem da rua/ Depois de ter servido de chapéu/ Ou de luneta para o menino observar a lua”.

Climério saiu do Piauí para ver o mundo, mas quanto mais via mais próximo ficou de sua aldeia. Parou em Brasília, formou gente e é o tipo de poeta que intimida. O sujeito tem que ser muito metido a besta para fazer verso depois de ler o que ele escreve.

Ezra Pound disse que poetas são as antenas da raça. Poesia nasce de uma ruminação, vem de dentro; mas não é impressão pessoal, senão não alcançariam tanta gente. Conheço gente que escreve versos para si, uma espécie de autoanálise que termina ali mesmo, na ponta do lápis. Não têm a ousadia de se apresentar ao mundo.

Mas poesia que importa é a que fala da gente, mesmo escrita por outro. De novo, Climério Ferreira: “Eu gosto de perder tempo/ Ficar horas olhando o nada/ Uma formiga carregando uma enorme folha/ Um nordestino capitando a caatinga/ Um sambista pintando sua casa de verde e rosa/ Uma estrada que liga nada a lugar nenhum/ Um time sem chance dando um show/ Um homem de rua admirando uma top model/ Isso lembra uma cena de Blow-Up/ Na qual palhaços jogam tênis sem bola”.

O melhor é que Climério vem se revelando pelas redes sociais, espaço normalmente dedicado ao ódio, que ele preenche com paixão e amor. A cada verso deixa uma pergunta: quem precisa de prosa? E vai revelando a alma do mundo por ali, leve, solto, quase feliz numa nostalgia cheia de esperança no futuro.

Talvez os políticos devessem ouvir mais os poetas, num jeito de olhar o mundo de forma menos egoísta ou pelo menos de uma forma que fuja do heliocentrismo. Mas seria importante que soubessem que poesia não são apenas versos, muito menos rimas. Para os poetas, o mundo tem jeito. Talvez só para eles.

Publicado no Correio Braziliense em 16 de janeiro de 2022

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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