A esta altura, todo mundo já ouviu a música da caneta azul. Um certo Manoel Gomes apareceu em um vídeo de telefone cantando – ou tentando cantar – uma canção de própria lavra que não obedece a nenhum dos parâmetros conhecidos, da língua portuguesa à métrica musical, e virou um fenômeno.
Apresentada sem acompanhamento musical, mas longe de poder ser classificada como à capela, a canção já ganhou remixagens para todo tipo de mau-gosto, da guitarrada ao tecno brega, o que contribuiu para piorar a situação do ouvinte. É, de certo, uma gozação.
O inspirado compositor britânico Noel Coward já tinha chamado a atenção para isso: “a força da música vagabunda é extraordinária”, disse. De fato, as notas musicais ressaltam aspectos que chegam a transformar o sentido das palavras, muito mais do que uma ênfase de discurso. Mas neste caso não é só a letra que é vagabunda.
Nos tempos pouco exigentes que vivemos, a canção se destaca entre a sofrência sertaneja e a pornofonia do funk carioca – e ganha o destaque que até outro dia era de Periguete de Internet, mas que já foi de Tiririca com a sua Clementina, de Sandro Becker nas rimas infames de Julieta e de João da Praia (“aonde a vaca vai, o boi vai atrás”). A lista é incontável.
O pior é que a moda pega: uma série de contrafações musicais já aparece em todos os telefones, desde o indizível rap Cata, Cata o Pequi, até um certo Delmir Pereira, autor da inacreditável Chá de Mamão. Dá saudade das músicas vagabundas do passado. A vantagem é que – espera-se – a modinha vai passar rápido, como tudo hoje em dia.
A replicagem de material ruim é comum, principalmente depois da popularização dos aplicativos de mensagens, e muitas vezes atinge o grau de epidemia, com o poder de irritar mais que sarna. E foi muito irritado que o nosso companheiro chegou ao bar, despejando impropérios a outro colega, que havia mandado um áudio com a tal música da caneta azul.
Diz ele que estava em reunião e imaginando ser alguma coisa urgente, clicou sem checar o conteúdo. Um gaiato lembrou que podia ser pior: o gemidão. Não resolveu; até porque a irritação não é com o raio da caneta que o rapaz perdeu, mas com a interferência das mensagens na vida das pessoas.
Nossa amiga radicalizou. Saiu de todos os grupos. Mesmo aposentada, perdia tempo demais com piadinhas, vídeos, textos espirituais e bobagens, depois de ser alertada pelo próprio aplicativo de mensagens que tinha ficado cinco horas e meia ligada naquela mixórdia. “Quem quiser falar comigo que me ligue”, disse.
As pessoas que ainda trabalham não podem se dar a esse luxo. Muitas mensagens são assuntos profissionais. Mas há uma nova etiqueta no mundo digital, que precisa ser observada. Avisar pelo aplicativo não é a mesma coisa que avisar, ou convidar, muito menos marcar. Parece convite de carioca: “passa lá em casa” (mas não dá o endereço).
A exceção é para ir ao bar. Aí vale até sinal de fumaça.
Publicado no Correio Braziliense em 1 de novembro de 2019
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