Foi-se o tempo que chamar alguém de cachaceiro era ofensa. Com o preço cobrado pela ‘marvada’ atualmente, é preciso vestir roupa de ir na missa e andar com um segurança ao lado para provar da calibrina. Não é para qualquer bolso – e o pinguço ganhou status de connoisseur.
Um amigo viu uma garrafa de Weber Haus na prateleira atrás do balcão e ousou pedir uma dose; o cheiro ocupou as narinas, o sabor despertou as papilas, o líquido desceu maciamente pelo esôfago até abrigar-se no estômago. Depois de alguns segundos foi liberado um vapor morno que fez o caminho de volta.
Seria uma bebida a prova de ressaca não fosse o preço pago pela dose: R$ 90,00. Quase custou um ataque cardíaco ao meu amigo, que já comprou garrafa de uísque escocês por menos. E olha que essas vêm de bem mais longe.
Ainda são muitas as chamadas cachaças populares, engasga-gatos, produzidas sem maiores cuidados, sem distinção na hora do corte da cabeça e do rabo. Essas ainda são vendidas, como se dizia, “a dinheiro de pinga”, bagatela. Mas deveriam ser motivo de revolta popular.
O Brasil, aliás, já brigou pelo direito de produzir e beber o chamado suor-de-cana. Foi em 1659, quando os portugueses – preocupados com a queda do comércio da bagaceira, destilado feito do bagaço pisado da uva – mandaram destruir os alambiques.
E deu-se a Revolta da Cachaça, episódio que deveria, mas não é, ser estudado nos bancos escolares, ao lado da Sabinada, Farroupilhas, Balaiada, Canudos e outros levantes populares, provavelmente por causa do preconceito. Onde já se viu um país brigar por causa de pinga?
Mas o negócio foi sério, houve prisões e até o enforcamento de Jerônimo Barbalho, que iniciou o movimento entre os senhores de engenho, revoltado com as taxas impostas pela coroa.
A venda e consumo de cachaça no Brasil ficou proibida até 1695, mas, desde esse tempo, dava-se um jeitinho. Quem queria, bebia, até porque o maior contrabandista do produto era o próprio governador do Rio, João da Silva e Souza.
Hoje existe uma espécie de gentrificação da pinga. Cabe esclarecer que gentrificação é aquele fenômeno urbano que vai empurrando as famílias mais humildes cada vez mais para longe por causa da valorização dos imóveis de determinada região. Com a cachaça, quem não tem dinheiro se satisfaz com um sabor menos requintado, algumas vezes perigoso, mas o porre é igual.
Está tudo diferente. Se antes a cachaça era acompanhada de choriço e torresmo, agora está sendo degustada até com queijos finos – talvez para compensar o investimento de até R$ 3 mil numa única garrafa.
A Havana, celebrada como a melhor aguardente por anos – mesmo quando foi obrigada a adotar o nome do fundador Anísio Santiago – continua sendo vendida em vasilhame de cerveja (600 ml) mas não sai por menos de R$ 650,00. Mas hoje ela tem muitos concorrentes, pelo menos em preço.
Até pinga feita em Brasília cobra o preço. A Remedim, do Lago Norte, custa entre R$ 60,00 e R$ 150,00, dependendo da alambicada e armazenamento. Mas na hora do aperto tem sempre uma 51, a R$ 15,00. Melhor que uma revolução.
Publicado no Correio Braziliense em 22 de setembro de 2023
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