Os novos idosos

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Essa vacinação por faixa etária pode até estar correta. Sem dúvida, dá segurança aos mais frágeis e vem reduzindo o número de mortes, mas traz uma outra pandemia, mais reflexiva e, esta sim, irreversível: as pessoas estão sendo declaradas velhas. Deu na TV: começa hoje a vacinação para os idosos de 62 anos. Minha amiga de 62 anos pulou da cadeira com um brado indignado – “Idosos? Como assim?”.

Ela não via a hora de se vacinar, mas ofensa é um preço alto demais; não tinha problema por ter nascido em 1959, nunca escondeu a idade. Mas daí a ser chamada de idosa publicamente vai uma distância enorme.

Minha amiga trabalha todo dia, faz ginástica na academia, tem disposição para sair (com todos os cuidados, ressalta) e é cheia de planos. “Velha é a vovozinha”, disparou em direção ao alegre apresentador de gravata colorida.

Ela sequer foi ao Detran para buscar a cartela para estacionar em vaga especial porque acha que deve ser concedida só a quem tem problemas de locomoção, não a ela, que pula corda, corre e faz polichinelo todo dia. E ainda tem saúde para cuidar dos netos e não acha estranho dizer que tem um namorado.

A única vantagem que aproveita por ter nascido há mais de 60 anos é o direito de aproveitar a fila especial de avião – isso antes da covid-19, claro – porque ninguém é de ferro para enfrentar aquela guerra que é colocar mala no bagageiro com o povo mal-educado
empurrando.

E ela apoia a vacinação prioritária dos mais velhos, claro; só não gostou de descobrir pela tevê que ela própria era considerada uma idosa. Não é um choque suficientemente forte para fazê-la desistir dos sonhos e trocar as viagens programadas por agulhas de crochê, mas ainda assim doeu. Por mais de uma semana ficou amarga, se pegou pensativa.

Reviu fotos que estavam no fundo do armário prometendo que desta vez organiza os álbuns, trabalho sempre adiado, encontrou bilhetes e cartas de antigos namorados, recortes da época de estudante; tinha até um álbum de figurinhas com aqueles bonequinhos pelados sob o título Amar é… Eram tempos mais românticos, inocentes, mas há muita vida pela frente.

A nostalgia bateu forte, mas antes que fosse transformada em melancolia, minha amiga tomou a única atitude que lhe pareceu sensata – além de urgente – naquele momento: foi para o salão de beleza.

Pediu tratamento caprichado. Eliminou cabelos brancos, fez balaiagem – que deve ser uma coisa muito importante, senão não teria este nome –,massagem facial com direito a creme de abacate e rodelas de pepino nos olhos, tirou os pelos rebeldes das sobrancelhas e se depilou. Saiu renovada, orgulhosa, poderosa, doida para esbarrar com o alegre apresentador de gravata colorida da tevê. Perguntaria na lata: “Quem é a idosa, heim?”

Na mesma entrequadra, saindo do salão, passou diante de uma obra de reforma. Peão de obra é jurado implacável e ela ouviu todos aqueles adjetivos, assovios e gritos guturais grosseiros. Impávida, entrou no carro. Ela nunca se sentiu tão feliz.

Publicado no Correio Braziliense em 2 de maio de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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