O senhor do tempo

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Para o pessoal que vai ver Anitta e Xan Avião no Na Praia, amanhã, aqui em Brasília, não é tarefa simples captar a música de João Gilberto, morto há uma semana. São mundos diferentes. E que desafiam o velho adágio que sustenta que gosto não se discute.

Para entender João Gilberto é preciso compreender o tempo. Desde o tempo que ele desenvolveu na batida do violão, que pode ser esticado ou encurtado, de acordo com a inflexão desejada, até aquele marcado pelo relógio, com minutos e segundos, e que rende de modo diferente para cada um de nós.

Ficção científica e física podem ajudar na explicação: a música de João Gilberto é como o monolito de 2001 Uma Odisseia no Espaço (do filme de Kubrick, não do livro de Arthur C. Clark), que cruza épocas, demole conceitos e interliga passado, presente e futuro. Na física, Einstein teorizou que espaço e tempo em si mesmos não são fixos e imutáveis; uma forma de comprovação é a música de João Gilberto.

Ou seja: João Gilberto é o senhor do tempo. Fala-se muito dos acordes dissonantes provocados pelas posições inusitadas cheias de sétimas e nonas – ou aquela quinta menor em Desafinado, que muda tudo. Mas o fundamental são as inflexões vocais e a constante busca pela perfeição que pode ser observada na obsessiva repetição do repertório limitado.

As repetições são eficazes, mas renderam folclore. É o caso da história do gato que teria se matado ao pular da janela do prédio, depois de ouvir a mesma canção dezenas de vezes. O fato real é que mais de uma pessoa presenciou ele tocando uma única música durante horas, na procura de acorde, inflexão e tempo exatos – Ronaldo Bôscoli teve que ouvir O Pato, música que o cantor recolheu do repertório dos Garotos da Lua, incontáveis vezes no corredor do apartamento (ele testava a acústica e a altura da emissão). Não se tem notícia que pulou de algum lugar.

Navegando entre a superficialidade da música popular, construída sobre elementos simples, e a profundidade de estruturas não-lineares e assimétricas, João Gilberto ampliou os limites das canções. Na verdade, explorou todas as possibilidades, do timbre à harmonia, do ritmo à entonação, do contraponto à própria melodia – era como reconstruir cada canção a partir dos escombros que ele mesmo provocava.

Difícil saber o que seria de João Gilberto sem a música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, mas o contrário também é verdadeiro. Afinal, é graças a João Gilberto, seu banquinho e seu violão, que a bossa venceu o tempo e permanece nova.

O importante é que o Brasil entenda que a música que ele produziu é maior que qualquer folclore em torno da personalidade multifacetada do artista.

João Gilberto mudou a música de um país musical e a levou para todo o mundo, abrindo uma janela sem precedentes ao influenciar gerações de músicos e ouvintes. Encheu o Brasil de orgulho ao fazer a língua portuguesa ser ouvida em todo canto, de mexer com a música de culturas tão diferentes.

É certamente o brasileiro que mais influenciou o mundo.

Publicado no Correio Braziliense, em 12 de julho de 2019

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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