O ano virtual

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A folhinha já está marcando 2021 e ainda é cedo para se noção da eficácia desse ano novo, tal e qual as vacinas que estão pipocando. Mas já dá para ver que 2020 é um ano meio Trump; como o presidente, quase ex, vem pedindo recontagem de votos para ver se estica sua permanência mais um pouquinho, mesmo que ninguém mais queira saber dele.

Ano velho é assim mesmo. Desde as primeiras caricaturas vem sendo representado como um velhinho decrépito, de longas barbas brancas, quando deveria ser retratado dentro de um caixão ou como um montinho de cinzas. Mas esse 2020 parece nos desafiar com novas cepas tão ameaçadoras quando a que começou naquele primeiro de janeiro, 368 dias atrás.

Mesmo descontada a paralisia, o desconforto e o luto causados pela pandemia, o ano que termina entra para a História da humanidade como o mais longo de todos, desafiando o calendário gregoriano, porque enquanto a covid-19 não passar, o ano de 2020 estará nos assombrando. Mais até do que 1918, o auge da gripe espanhola, que matou cerca de 45 milhões de pessoas, em 14 meses e três ondas.

Só que o cabalístico 2020 – que, na conta dos místicos, prometia tanta felicidade no janeiro anterior a este – não será esquecido. Basta folhear essas retrospectivas para ver que quem chegou até aqui é um sobrevivente, na mais ampla acepção do vocábulo, de tempos tempestuosos, onde a razão enfrentou uma nova idade média, ainda por causa da irrefreável ascensão dos idiotas.

Não que os parvos tenham surgido ano passado; essa deve ser uma das tais sete pragas do Egito antigo (e se não está na lista é porque o Faraó bobeou). Com o confinamento, a convivência se deu virtualmente; melhorou, mas não nos livrou das tolices, porque até grandes veículos de comunicação estão se abrindo à ignorância, quando não a praticam.

Outro dia, vendo o noticiário da TV, cedinho, a polêmica estava no ar: qual seriado japonês teria sido o mais importante – Jiraiya, Changeman ou Jaspion. Isso no meio de reportagens pouco objetivas e muito desinformativas de assuntos da cidade. Achei que Brasília – como Tóquio – era atacada por algum parente do Godzila, mas era só mais um ataque desassisado.

, Ligo o rádio e o locutor quer saber se amarelinha pode virar esporte olímpico. Azar de quem quer notícia; eles, aparentemente, querem ser nossos íntimos.

Mas o ano que insiste em entrar vai ser melhor, me informa Ceará, que depois da quinta cerveja incorporar Nostradamus e Gandhi ao mesmo tempo. Disse que o ano velho foi uma provação, mas as vacinas estão aí para provar que a ciência continua sendo o melhor remédio contra a crendice.

A conversa ia bem, otimista, até que o Faixa – de máscara, como manda o figurino – chega para dizer que iria tomar uma medida radical para que a desgraceira não se repetisse: “Ano passado botei cueca amarela para ganhar uma grana, antes foi branca para ter paz em casa, já usei preto para espantar urucubaca. Esse ano eu entro no pelo”.

Publicado no Correio Braziliense em 3 de janeiro de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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