Há uma canção de Herivelto Martins e Marino Pinto que diz que segredo é para quatro paredes. Acredito nela, mas não ao ponto de cantar desbragadamente. Talvez por isso tenha tantas restrições a analistas, psicólogos e esse pessoal que vive de ouvir problemas alheios. Para mim não serve; sem meus segredos eu estaria irremediavelmente incompleto.
Ainda levo fé na vida privada, me julgo incapaz de expor situações que teoricamente fariam com que eu me conhecesse melhor. Talvez seja esse o ponto: insegurança; se eu me conhecer muito bem pode ser que não goste de mim. E daí como eu faria para conviver com uma pessoa tão próxima e tão desagradável?
Quando criança fui levado a, que me lembre, três psicólogos e um capelão do exército com cara de exorcista. Minha mãe certamente achava que eu tinha jeito de maluco, até porque nenhum dos meus amigos teve experiência similar. Nem meus irmãos. O único resultado prático dessa aventura é que nunca mais voltei a um consultório. Tenho mais medo de psicólogo que de dentista.
Mas gente é como caixa d’água e tem que deixar vazar um pouco pelo ladrão quando enche demais. Todo mundo tem direito a ter pensamentos menos ou nada nobres, até mesmo alguns violentos, outros sórdidos. Uns inconfessáveis; desses não vamos tratar.
Mas nenhuma dessas motivações seria suficiente para desencadear alguma reação violenta. Sou da paz, não gosto de soltar nem traque. O máximo da morbidez que chego é um antigo desejo de escrever obituários, mas não apenas de pessoas ilustres.
Na Inglaterra – até por causa da esquisitice inerente aos britânicos – é uma posição nobre nos jornais. São pessoas respeitadas, que costumam fazer entrevistas com os candidatos a defunto, ocasião em que são recebidos com honras e não como sinal de mau agouro. A proverbial fleuma britânica ensina que é sinal de prestígio, que aquela vida será eternizada, segundo acreditam esses faraós da mídia.
Mas meu particular desejo por escrever obituários não carrega nenhum caráter nobre. Já escrevi muitas vezes lamentando mortos ilustres, vidas cheias de realizações, ricas em detalhes, personalidades fascinantes; mas as vezes sonho em ir além.
O sonho é não ser um obituarista comum – gostaria muito de escolher os defuntos a serem retratados em palavras. O meu lado mais escuro fica imaginando a delícia que deve ser escrever sobre a morte de quem você não queria que nem tivesse nascido. Seria uma anticarpideira; autor de textos verdadeiros. Crus e cruéis.
Fulano de tal, tantos anos, era um escroque – seria a primeira frase do texto. Daí por diante iria espalhando adjetivos: facínora, safardana, calhorda, canalha, mancomunado em choldrabolda. São fascinantes essas palavras dedicadas à escória da humanidade. Teria que economizar nas palavras para não ter eu economizar nos defuntos.
O obituarista, por dever de ofício, deve torcer para que haja pelo menos um morto ilustre por dia. É a parte ruim do trabalho, quando passa a ser confundido com um mero papa-defuntos. Mas certamente não queria ser obituarista a vida toda. A mim bastariam uns dez dias.
Publicado no Correio Braziliense em 26 de outubro de 2018
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