Mais do que o ouro

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Os espanhóis afiaram as espadas e derramaram sangue no novo continente, de olho no ouro que luzia em templos de incas, astecas e maias, civilizações que estavam por aqui milhares de anos antes da chegada das caravelas e de homens vestidos com roupas de ferro. O ouro acabou logo, mas havia muito mais.

Ao final, além do metal dourado, os vencedores levaram as batatas; e isso centenas de anos antes de Quincas Borba inventar a expressão para o amigo Rubião, no romance de Machado de Assis.

Há 250 anos, os conquistadores levaram navios cheios de de batatas do Peru para a Europa, mas como era comida de índio não entrava nos salões da nobreza; toda a produção era destinada a engordar porcos e, vez por outra, loucos. Chegou a ser proibida, acusada até de provocar lepra.

É uma história narrada por Eduardo Galeano em Las Caras e Las Mascaras, da trilogia Memoria del Fuego, em que o autor uruguaio conta alguns segredos da História do continente, mas não a origem, da expressão “vá plantar batatas”.

Voltando à França, não demorou para a batata entrar na dieta dos presídios. E foi entre as grades que começou sua redenção, pelas mãos de Antoine Parmentier, personagem de múltiplas atividades, inclusive a de chef de cozinha, que estava preso pelos prussianos, e foi descobrindo utilidade para aquele tubérculo.

Livre do cárcere, promoveu um festim com vários famosos que naquela época não viam problemas em aparecer ao lado de um ex-presidiário, incluindo o embaixador norte-americano Benjamin Franklin. E no menu só tinha batata: pão, bolinho, sopa, salada, purê e até uma aguardente, que ninguém é de ferro, e que foi uma precursora da vodka.

E para a sobremesa, mais batata.

No final, consta que Parmentier fez uma louvação ao tubérculo à empanturrada plateia, dizendo que seria o fim da fome na Europa, já que a planta saiu-se muito bem mesmo em clima frio. Foi aclamado e a batata foi expropriada; embora no Brasil seja chamada de inglesa, virou francesa, como escreveu Galeano: “reino aonde a arte de bem comer é a única religião sem ateus”.

Dois séculos e meio depois da batata matar a fome de todo mundo, virar comida favorita de criança na forma frita, vem um especialista (sempre eles) dizer que não se pode comer batata todo dia. Que batata engorda por ser carboidrato, até os esquálidos sabem, mas daí a dizer que faz mal vai uma distância enorme.

Ainda mais agora que estamos descobrindo uns petiscos novos, como chips de batata-doce (quem diria!) com páprica, batata assada no espetinho, baroa em rodelas na air-fryer e croquetinho de batata. São grandes companheiras de cervejas mais leves ou drinques um pouquinho amargos.

Pode ser que nada disso seja novidade para muita gente, mas as descobertas são mesmo individuais e esta é a única vantagem de ter amigos formados em gastronomia, já que eles costumam ser meio prolixos quando falam de comida. Melhor que isso é só amigo dono de lancha: a gente só entra com a diversão.

Publicada no Correio Braziliense em 3 de fevereiro de 2023

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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