Há meio século

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Se fosse possível fazer um levantamento sobre as músicas mais tocadas em acampamentos e rodinhas de violão, provavelmente Andança ficaria em primeiro lugar. “Vim, tanta areia andei/ Da lua cheia eu sei/ Uma saudade imensa….” – mesmo quem não sabe a letra canta, inventa, fecha os olhos e ataca o contracanto nessa história de amor errante.

Meio toada, meio samba, Andança está fazendo 50 anos e deve ganhar um espetáculo para comemorar a data. Por mais que mereça, a festa ficaria mais completa se outras canções lançadas naquele mesmo 1968, o ano que nunca acaba, fossem incluídas; só para começar, a outra campeã dos acampamentos, Viola Enluarada, é da mesma safra.

Mais engajada, é um retrato dos movimentos libertários de então – “A voz que canta uma canção, se for preciso canta um hino/ Louva a morte…”. Também foi o ano de Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores), canção proibida pela censura por subversão (palavrão naqueles tempos) e um ataque frontal, usando apenas dois acordes, ao regime – “Esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Mas nem tudo era contestação. Modinha (“Olho a rosa na janela/ Sonho um sonho pequenino”), a premonitória Sabiá, que narrava um exílio antes deles efetivamente ocorrerem (“Vou voltar, sei que ainda vou voltar”) e As Canções que Você Fez pra Mim (Tantas vezes eu enxuguei seu pranto/ E agora eu choro só, sem ter você aqui”) mostravam que o lirismo mantinha sua força.

Foi um ano de sambas clássicos, como Tive Sim (Cartola), Alvorada (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello), Pressentimento (Elton Medeiros e Hermínio Bello), Sei Lá Mangueira e Coisas do Mundo Minha Nega (Paulinho da Viola). E de uma das últimas grandes marchinhas de carnaval, Até Quarta-Feira.

1968 marcou o fim do programa Jovem Guarda na TV e a estreia de Divino Maravilhoso, consolidando o movimento tropicalista – as músicas: Baby, Tropicália, Geleia Geral, Sou Loco por Ti, América e muitas outras.

E foram lançadas duas joias de Tom Jobim: Wave (Vou te Contar) e Retrato em Branco e Preto (com Chico Buarque). Houve ainda uma série de canções descoladas: Sá Marina, Vesti Azul, Nem Vem que Não Tem, todas mostrando a força de Wilson Simonal, o maior ídolo do país na época, e até o Samba do Crioulo Doido, sátira de Sérgio Porto aos sambas-de-enredo, misturando princesa com trem, JK com a realeza e Anchieta com a proclamação da escravidão.

Não para por aí. Foi também o ano de Lapinha (Elis Regina), Você Passa eu Acho Graça (primeiro sucesso de Clara Nunes, improvável parceria de Ataulfo Alves e Carlos Imperial) e Mudando de Conversa (Doris Monteiro).

Daí é possível dar um corte de meio século, até os dias de hoje, quando enfim o país do futuro mostraria toda sua grandeza. E nos deparamos como os concorrentes a melhor música da temporada, na promoção do refrigerante: Anitta, Pablo Vittar, Thiaguinho, Ludmilla, Luan Santana, Valesca, Projota e Simone e Simaria. E ainda não inventaram a máquina para voltar no tempo.

Paulo Pestana

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