Sentado, assistia a vida passar pela W3 Norte diante de uma garrafinha de cerveja, meio irritado porque haviam acabado os tremoços – não há bom botequim sem um estoque decente de tremoços, reclamei ao garçom. É duro ter que se contentar com cebolinhas em conserva; mas o mau humor foi interrompido. O Terraplanista havia chegado.
Eu já havia me encontrado com ele anteriormente. Doidos mansos me fascinam – fico tentando imaginar como a vida passa naquelas cabeças delirantes, que enxergam um mundo bem mais colorido que o meu. Mas não tinha trocado mais que meia dúzia de palavras com ele, que me reconheceu.
Apontei a cadeira como forma de convite para sentar-se, quando o garçom trouxe, antes que ele pedisse, uma Brahma zero. Um habituée, pensei. Mas Brahma zero? O Terraplanista é afável. Ainda não tem 40 anos, barba cuidada, formação superior (é geólogo), trabalha no governo; carrega o defeito de ser um catequista, desses que querem puxar todo mundo para as próprias crenças.
Naquele momento, quando a cortina da noite baixava e o volume de carros na rua aumentava, ele começou a se empenhar em me convencer que – como é que eu tinha dúvidas! – a Terra é plana.
Tentei brincar: “Concordo que a Terra é chata, mas não que é plana”. Ele não gostou – pirados não gostam de chistes, levam para o lado pessoal. E atacou: “É plana porque é o óbvio, a gente sente ela assim. É como um disco, com a borda toda de gelo (seria o polo sul), assim como o centro (polo norte) e os continentes espalhados em torno desse centro”. Para piorar, um domo cobriria essa área toda, contendo o ar que respiramos.
Ou seja: uma pizza coberta com uma campânula. Perguntei se ele acreditava na teoria da gravidade e ele me olhou como se o maluco fosse eu. “Claro, vocês terrabolistas são metidos a engraçadinhos”, respondeu. Só faltava essa mesmo. Eu, terrabolista.
Mas a força da gravidade dele é diferente da de Isaac Newton, em que a massa gera um campo que puxa tudo para o centro do globo – por isso a forma esférica dos astros. A gravidade, diz o Terraplanista, é o nome da força que nos empurra para o chão. Só. Sem explicação. Aí eu rabisquei:
F= GM1 m2
R2
Não sei como, mas ainda me lembro da fórmula de Newton. Ele não disse nada. Mas eu estava ali para especular, ouvir, não para contestar. E, velha mania de repórter, enchi o rapaz de perguntas: “O que tem na parte de baixo da terra chata?, se a gente pode ver um navio sumindo no horizonte não é sinal que a forma arredondada do planeta é que o esconde?, porque sol e lua são esféricos e Terra não?”.
O Terraplanista não embatucava. Tinha resposta para tudo – uma mais estapafúrdia que a outra. E ainda tinha teorias conspiratórias: astronautas subornados para contar mentiras, efeitos de cinema para mostrar o planeta, o globo não existe.
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