Tem gente que gosta das letras, dos livros. Mas o que o livreiro Jorge Brito ama de verdade são as páginas – e quanto mais amareladas, melhor. Há anos ele trocou a gerência do seu Armazém do Livro Usado, na 403 Norte, hoje tocado pelo filho, para se tornar um garimpeiro das letras.
Jorge trocou o Ceará por Brasília em 1979 e tem se especializado em comprar bibliotecas inteiras, algumas de autoridades, algumas de gente comum; e fuçar no que as pessoas guardaram, anotaram, fotografaram.
Herdeiro nunca sabe o que tem realmente valor e Jorge sabe que as pepitas aparecem no que parece lixo; e guarda, principalmente se tiver relação com a história de Brasília. Recentemente, encontrou uma carta anônima de 30 de janeiro de 1961, em que o missivista narra sua estada no Hotel Aquino, do Núcleo Bandeirante, que viraria cinzas um ano depois.
O cicerone diz que é um dos melhores da Cidade Livre. Mas a propaganda não surtiu efeito. Escreve o hóspede:
“O aspecto desagrada. É um vasto casarão de madeira, de construção ordinária, sem caprichos de acabamento. O beiral de zinco, amarfanhado e já corroído de ferrugem, denuncia logo o emprego de material velho de segunda ou terceira mão.
“As janelas, quadradas e pequeninas, de uma única folha de madeira, quando fechadas vedam por completo a entrada de ar e luz; em compensação, se abertas, servem para entrar chuva.
“Que alguém, estando do lado de fora, possa espiar dentro dos quartos.
“A fachada encosta diretamente da lama da rua. De sua cor primitiva, azul escuro, mal se vê estreita faixa na parte superior – o resto desaparece sob os chapiscos de lama que as rodas dos caminhões arremessam continuamente.
“Há outros hotéis, talvez de melhor aparência – concorda o cicerone, desolado – mas este é o mais familiar”.
Não foi a mais agradável das noites do nosso anônimo hóspede, que reconhece os donos do estabelecimento que liam o Correio Braziliense na recepção, e descreve com minúcias os fatos que antecederam a dormida.
“De qualquer forma, o banho, gelado, dá para uma ilusão de limpeza. Resta cair na cama e esperar por um soninho reparador… Se a roupa de cama atende a confortos de higiene pouco importa: sob a luz mortiça de uma lâmpada a tremelicar por falta de voltagem, ninguém distingue branco de bege, qualquer roupa de cama serve…
“O mal são as pulgas: começa num coçar sem fim, por todas as partes do corpo. As pulgas atacam nos lugares mais difíceis, obrigando a ginásticas incríveis de contorcionismos… Coçar sobre a terceira vértebra cervical não é sopa!
“Também certos ruídos atrapalham, choferes de caminhão, estacionados junto ao tabique externo do quarto se divertem contando piadas e rindo alto… Uns pândegos! De quando em quando um caminhão, encostando de marcha à ré, acontece bater no tabique, que estala, afunda, ameaça desabar…”
Jorge Brito tem recolhido relatos como este que contam a história não oficial de Brasília no que famílias acreditam ser lixo. Só falta ele arrumar os alfarrábios.
Íntegra da carta
Brasília – 2 – Cidade Livre
O Hotel Aquino, segundo providencial cicerone, é um dos melhores da Cidade Livre.
O aspecto desagrada. É um vasto casarão de madeira, de construção ordinária, sem caprichos de acabamento. O beiral de zinco, amarfanhado e já corroído de ferrugem, denuncia logo o emprego de material velho de segunda ou terceira mão.
As janelas, quadradas e pequeninas, de uma única folha de madeira, quando fechadas vedam por completo a entrada de ar e luz; em compensação, se abertas, servem para entrar chuva
Que alguém, estando de lado de fora possa espiar dentro dos quartos.
A fachada encosta diretamente da lama da rua. De sua cor primitiva, azul escuro, mal se vê estreita faixa na parte superior – o resto desaparece sob os chapiscos de lama que as rodas dos caminhões arremessam continuamente.
Há outros hotéis, talvez de melhor aparência – concorda o cicerone, desolado – mas este é o mais familiar.
O argumento valeu.
O gerente do hotel atende meio displicente, por detrás de um balcãozinho. E enquanto ouve, com a ponta da língua passa de um canto para o outro da boca a “bagana” de cigarro que lhe pende sob os fartos bigodes.
Prova de identidade, para quê? Seiscentos cruzeiros por dormida. Barato, baratíssimo, levando-se em conta os preços de Brasília. Evidentemente não se trata de apartamento com banheiro privativo, tapetes, “break-fast” servido por “chambermaids” e outros luxos desnecessários…
Nessa altura, um casal que lê o “Correio Braziliense” suspende a leitura, olha por cima do jornal aberto. E ambos – ele, um velhote de pijama listadinho, ela, uma velhota muito vermelha e muito magra, visivelmente os donos da espelunca, sorriem, satisfeitos, aprovando os atos do gerente,
Assim, o jeito é concordar de cara alegre.
– O pagamento é adiantado?
– Sim, adiantado. E o senhor está de sorte: ainda temos um quarto vago, o 28.
E lá se vai uma nota de mil cruzeiros estalando de novinha. Vem o troco em notinhas velhas, imundas, dilaceradas, emendadas, algumas com papel de jornal. Chega a vez de reclamar a chave.
– Não tem chave, explica o gerente. Para quê chave? A porta do quarto tem por dentro uma tramela.
O quarto 28 é um cubículo, com uma caminha estreita, na qual mal cabe uma pessoa magra e de estatura mediana… Mas quem tem sono e o corpo moído, não faz caso… O importante, agora, é um banhozinho morno. Mas onde encontrar o banheiro?
– Muito fácil – informa o “boy”, um rapaz imberbe, de cara viciada, metido numa camiseta mais encardida que as tábuas do soalho.
De fato, a coisa é simples. Basta seguir pelo corredor afora, quebrar à esquerda por outro corredor, prosseguir por um terceiro, cruzar um cimentado descoberto, ao fim do qual três banheiros, rescendendo a cantina, funcionam, não muito limpos, mas suficientes para os hóspedes de cinquenta e poucos quartos.
O crivo do chuveiro, pendurado de uma travessa de pau, mal deixa escorrer um fiozinho d’água. Em compensação, pinga sempre sobre quem tiver de servir-se do vaso sanitário. Nada de banco, nada de estrado… O despir-se, ou o vestir-se, faz-se mesmo sobre o cimento alagado, sem ligar para os pedaços suspeitos de papel que transbordam de um caixote velho de madeira…
De qualquer forma, o banho, gelado, dá para uma ilusão de limpeza. Resta cair na cama e esperar por um soninho reparador… Se a roupa de cama atende a confortos de higiene pouco importa: sob a luz mortiça de uma lâmpada a tremelicar por falta de voltagem, ninguém distingue branco de bege, qualquer roupa de cama serve…
O mal são as pulgas: começa num coçar sem fim, por todas as partes do corpo, As pulgas atacam nos lugares mais difíceis, obrigando a ginásticas incríveis de contorcionismos… Coçar sobre a terceira vértebra cervical não é sopa!
Também certos ruídos atrapalham, Choferes de caminhão, estacionados junto ao tabique externo do quarto se divertem contando piadas e rindo alto… Uns pândegos! De quando em quando um caminhão, encostando de marcha à ré, acontece bater no tabique, que estala, afunda, ameaça desabar…
E tem também, para atrapalhar, o toc-toc intermitente de tacões de botas ferindo o soalho nos corredores… O toc-toc, onde quer que aconteça, faz vibrar o soalho contínuo de madeira, transmite-se ao , repercute no ouvido colado ao travesseiro.
Por sorte, a luz macia da madrugada, penetrando pelas frestas do tabique, anuncia o momento de levantar…
À saída, manhãzinha cedo, o gerente, mais bem disposto, indaga:
– O senhor dormiu bem?
Sim, tudo parece bem. É sempre agradável meter a cara fora do quarto ao despontar da manhã.
A rua se estende, larga, imensa, com suas casinhas de comércio coloridas, todas de madeira. O lodaçal da véspera virou atoleiro. Os pesados caminhões, num tráfego intenso, chapinham, espalhando lama em todas as direções.
O hotel não serve café. A dormida é a seco, mas o solicito gerente apontando, através da chuva e do lameiro, para a esquina oposta, indica o botequim onde se toma o melhor cafezinho da manhã.
30-01-61
Publicado no Correio Braziliense de 9 de agosto de 2019
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