Ninguém mais pode ter dúvida que vivemos num país de intelectuais. Essa pandemia está dando a oportunidade para que todos deem uma espiadinha na casa de quem está sendo entrevistado pelas emissoras de televisão, participando de uma reunião virtual ou mesmo de um encontro de amigos.
A câmera do computador ou do telefone é colocada estrategicamente para mostrar um ambiente que vai servir de fundo. E aí a gente vê revelada a vaidade mais interior de cada um: há quem foque nas orquídeas mais bonitas, na decoração da sala ou no abajur charmosinho no canto. Mas a maioria tem preferido mostrar cultura.
É uma estante mais bonita que a outra, todas cheias de livros coloridos, coleções de capa de couro (provavelmente com títulos em letras de ouro), prateleiras arrumadas com capricho de bibliotecário com TOC. Há quem desconfie que seja apenas uma cultura de lombada, livros com as bordas das páginas ainda grudadas e à espera de uma espátula corta-papel, antigos símbolos de volumes nunca abertos.
Não sou tão cínico quanto alguns amigos, revoltados com essa cultura-ostentação. Acho que, no mínimo, a exposição faz propaganda dos livros. E precisa. Ano passado foram vendidos quase 42 milhões de exemplares – menos de 25% da população, mesmo com tanta gente em casa – , mas é sempre bom que se fale neles, mesmo as brochuras mais dispensáveis.
É que a literatura mesmo está por baixo e nem livros de não ficção estão entre os destaques. A maioria dos volumes mais vendidos trata de um tema bem pragmático: ensinar como ficar rico. É o caso de Do Mil ao Milhão, de Thiago Nigro, e Os Segredos da Mente Milionária, de T. Harv Eker.
Também fazem sucesso obras que dizem ajudar as pessoas a enfrentar a vida, ou pelo menos alguns aspectos dela, como A Arte de Ligar o F*da-se, de Mark Manson, e Mais Esperto que o Diabo, de Napoleon Hill, que até pode parecer, mas não é um manual para enganar o tinhoso; é só um mais um guia que promete fazer com que as pessoas se deem bem.
Não importa. Pessoas tidas como importantes ou “especialistas” estão mostrando suas bibliotecas na TV. Há quem se divirta tentando adivinhar os títulos pelas lombadas, o que certamente desvia a atenção do que está sendo dito, mas sempre fica a certeza de que o livro é um objeto importante e que deve ser valorizado.
Tomara que não sejam livros falsos ou, pior ainda, virtuais como o desses programas de reunião por computador, em que o participante pode escolher entre a foto de uma praia ou de biblioteca para colocar atrás. Tudo depende da imagem que se quer passar: folgazão ou intelectual.
A ideia não é nova: basta ir a uma loja de decoração que há muita opção de peças inteiras com livros sem páginas. São coleções, muitas vezes, com as obras completas de escritores renomados, mas que são representadas apenas pela casca, ou melhor, pela capa. Falsos como algumas notícias. Ocos como a cabeça de certos entrevistados.
(O quadro acima é o Retrato de Émile Zola, por Édouard Manet)
Publicado no Correio Braziliense em 23 de maio de 2021
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