CRÔNICAS REVISTAS: Drama na noite

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              Dizem que Deus ajuda a quem cedo madruga, mas por experiência própria posso garantir que ele também não abandona quem dorme tarde. A madrugada da segunda-feira já tinha sido rompida e só os recalcitrantes ainda ocupavam cadeiras no bar – às quais se agarravam para que não fossem recolhidas naquela velocidade de fim de expediente.

Os músicos amadores e profissionais que se reúnem todos os domingos já tinham quase todos se recolhido para alívio do Milton, que mesmo aposentado fica preocupado com o PIB nacional – “esse pessoal não vai trabalhar amanhã”, reclama. Restaram o violão do Otávio e o bandolim do Raul. Era o suficiente para a noite seguir em frente.

A música era boa – há uma cumplicidade rara entre o coronel da reserva e o informático, que só se encontram – quando tanto – duas vezes por semana; às quartas com a Turma do Gambá, agora em novo teto, na galeteria Beira Lago, ao lado do Pier 21, e aos domingos no Grao, boteco do Lago Norte.

Raul estudou em Conservatório, na Bahia, Otávio aperfeiçoou-se nas serestas de rua em São João del Rey. Tão diferentes, se entendem perfeitamente na música.

A turma que ficou estava embevecida com a música que, baixinha, ocupava todo o recinto. Nem aqueles que beberam além do recomendado e falavam com volume de lavadeira incomodavam. Foi quando se aproximou Fernando Lopes e sentou-se com os dois.

Fernando é cantor das primeiras noites de Brasília; frequentou o Catetinho, onde interpretava boleros e tangos para afastar a solidão das noites do ermo. Era uma época diferente, em que o Presidente da República também recebia visitas na calada da noite, mas só para ouvir música, dançar e… sabe-se lá mais o que. Bons tempos.

E Fernando Lopes via o presidente dançando muitas vezes, mas nunca contou com quem; donde se conclui que, com ele, não adianta premiar delação. Sabe guardar segredo.

Os cabelos são inteiramente brancos, mas a voz está intacta. Se no passado ele não se separava de um caderninho meio seboso com centenas de letras de músicas e respectivas tonalidades, ele agora tem um tablet onde armazena as canções. O tempo passa, mas parece que é só para os outros.

E neste dia ele decidiu que iria mostrar que não canta apenas boleros. Pediu um sol menor e começou: “No dia em que nascemos e vivemos para o mundo, nos falta uma costela que encontramos num segundo….” – era Mia Gioconda, canção de Vicente Celestino, operística, própria para a voz de tenor de Fernando que, sem microfone, espiava o tablet para não errar o trecho em italiano.

A música conta a história de um pracinha brasileiro que, enquanto guerreava na Itália, conheceu e se apaixonou por uma mocinha. Como é Celestino, todos sabem que acaba mal, na beira do cais. E Fernando Lopes nem se importava que só estávamos nós, gatos pingados, ali. Ofereceu drama à canção, que saiu perfeita, mesmo sem ensaio – nada além do tom. Outras canções vieram, tão boas quanto, igualmente surpreendentes. Tivemos todos uma semana mais leve.

Publicado no Correio Braziliense em 9 e junho de 2017

Paulo Pestana

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