Do lago ao prato

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Todo fim de semana, ele tira pelo menos uma manhã para caminhar na recém-liberada orla do lago Paranoá. Não há trilha. Pior, o mato cresceu depois que os moradores recuaram as cercas, a retirada de algumas construções deixou ruínas e buracos que são perigosos, além dos cachorros soltos que não sabem da Lei e acham que ainda estão defendendo o território.

É quase uma aventura. Em alguns trechos é preciso pisar na água para atravessar, mas vale a pena. Árvores deixadas ali abastecem o pessoal com goiabas, mexericas (a safra do ano acabou, mas sempre sobram algumas), jabuticabas e até cajás-mangas, que são levados para casa, onde ganham o acompanhamento de uma cachacinha.

Mas o nosso amigo não é muito chegado a frutas, verduras e hortaliças em geral. É um carnívoro. E no meio do matagal da orla, reinam as capivaras. Vêm em bandos e, embora sejam ariscas e fujam pela água quando vêem um movimento fora do comum, estão mais folgadas do que nunca estiveram.

O amigo aventureiro é nordestino, foi criado na aridez do sertão, terra seca, pouca água, e só viu uma capivara ao vivo depois de chegar a Brasília, já que o bicho só vive onde tem água. “Parece um preá gigante”, disse ao ver o animal pela primeira vez. “É de comer?”, assuntou. Os amigos da roda de chope estranharam a pergunta.

Ninguém ali havia provado carne de capivara e começou-se uma discussão para saber se é possível comer um roedor – uma bobagem retórica, porque se come até gabiru e preá, dependendo do nível da fome. Alguém propôs perguntar ao Luiz Trigo, dono do Le Birosque, na Quituart, e um especializado em suínos mas que, como professor de gastronomia, deve saber o que fazer com uma capivara.

Mas o Google estava mais perto e já informava que, com baixo teor de gordura, a carne do bicho tem sido valorizada por paladares em busca do exótico. Informa também que é rica em ácidos graxos e ômega-3, que podem reduzir o colesterol e gorduras de baixa densidade no sangue. Como no porco, as partes mais valorizadas são o pernil e o lombo.

O interesse cresceu e logo alguém pesquisou sobre as formas de cozinhar a carne e chegou a uma receita de pernil de capivara assado no forno, com folhas de goiabeira; depois, um lombo ao molho de vinho, bifes à milanesa com molho de manjericão e até costelinha defumada com feijão branco.

As receitas eram recitadas em voz alta e era possível observar o nível de água na boca subindo, especialmente no amigo aventureiro, que nunca teve muito pudor para saborear carnes diferentes, inclusive algumas proibidas. Diz ele que tem uma receita de peba cozido que é de tirar o boné – ou de ir para o xilindró, porque caçar tatu é crime inafiançável.

Mas não é proibido comer capivara. E rapidamente ele, que é engenheiro, começou a rabiscar um desenho no guardanapo. Era um protótipo de armadilha para capivara, que ele vai mandar fazer no serralheiro.

Publicado no Correio Braziliense de 23 de setembro de 2018

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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