O rádio do carro estava no modo aleatório (shuffle), procurando uma emissora, quando começou a tocar uma canção sobre uma menina de olhos tristes, presa a uma cadeira de rodas; um drama. A música é de Fernando Mendes, especialista em tragédias musicadas –chegou a ser censurado em 1974 por Meu Pequeno Amigo, que tinha como tema o sequestro do menino Carlinhos, um ano antes, que nunca mais foi visto.
Curioso é que, dias antes, conversávamos – não me pergunte porque – sobre Amado Batista, quando um amigo, com voz solene, declamava os versos de Amor Perfeito. Primeiro sucesso do compositor goiano, descrevia a morte da mulher, durante o parto: “seu sorriso aos poucos se desfazendo, então vi você morrendo, sem pode me despedir”.
Dramalhões são matéria prima de grande parte das músicas populares, uma herança das óperas italianas. Nos tangos, boleros e sambas canções não há lugar para uma nesga de alegria; entre os chamados bregas, a tragédia chega às raias do suicídio, como se música fosse feita para chorar e fazer sofrer.
Num dos artigos de seu livro Cantos e Encantos, o pesquisador Renato Vivacqua, há anos radicado em Brasília e que recentemente, e infelizmente, anunciou sua aposentadoria como pesquisador da música brasileira, faz uma coletânea desses dramas sonoros. Começa com Vicente Celestino, claro, deixando claro a veia operística da desgraça.
Começa com Coração Materno (1937), a absurda história de um camponês que, para provar seu amor, arranca o coração do peito da própria mãe para entregá-lo à amada. São imagens horripilantes: “Tira do peito sangrando, da velha mãezinha o pobre coração, e volta, a correr, proclamando, vitória! Vitória tem minha paixão!”. A situação fica pior quando o homem cai, quebra a perna, o coração vai ao chão e ele ouve: “Vem buscar-me, eu ainda sou seu”.
Ainda do repertório de Celestino, Vivacqua lembra Calvário, drama de um tuberculoso terminal que deseja beijar a mãe, mas teme transmitir a doença. As imagens são cruéis: “Sobre uma cama carcomida, parecia, com a tristeza das mais tristes prisões, ele rolava o dia inteiro, prisioneiro, do mal terrível que roía os seus pulmões”.
Vivacqua faz um inventário das maiores tragédias musicadas. Algumas são conhecidas, como Coração de Luto, de Teixeirinha, maldosamente apelidada de churrasquinho de mãe, que narra um incêndio e a consequente morte da mãe. Outras, esquecidas, como O Castigo da Cruz, gravada por Pardinho e Pardal, história de um profanador que, no final, recebe um recado do finado pai: “O vulto falou: meu filho, não pratiques isso mais, você tentou arrancar a cruz de seu próprio pai”.
Mas a lista é interminável, vai do Chico Mineiro, que só depois de morto é reconhecido pelo irmão, a Pretinho Aleijado, sobre um rapaz maneta que mesmo depois de morto tocava o sino da igreja. Mesmo estrelas de insuperável grandeza, como Francisco Alves, cantaram trágédias, caso de Trahição (1928), de Joubert de Carvalho: “Mulher perjura hei de esmagar-te, apunhalar-te o coração, ensanguentaste a fé mais pura, de uma candura, numa traição”. É uma catarse.
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