De língua para fora

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A guerra podia ser fria, mas o mundo esquentou naquele final dos anos 1950, quando foi divulgada a foto do temido líder máximo soviético Nikita Krushev beijando – na boca e com vontade – o cosmonauta Iuri Gagarin, que acabara de voltar no espaço, sabe-se lá com quais sapinhos siderais. Leonid Brejnev e o alemão Erich Honecker também pareciam mais do que camaradas quando flagrados num tórrido cumprimento que virou grafite no muro de Berlim.

Outros próceres na antiga URSS foram pródigos na distribuição de beijos masculinos – chamado de beijo fraternal socialista – com imagens tórridas, embora em preto e branco, que corriam o mundo. A glasnost de Gorbachev acabou com essa tradição; não se fazem mais comunistas como antigamente.

O kama sutra tem um capítulo inteiro dedicado só a ósculos, mas os hindus não se beijam em público. Maoris neozelandeses e esquimós se beijam esfregando os narizes. Tongas e chewas, da África do Sul, simplesmente não se beijam; têm nojo.

Na Nova Guiné, membros da tribo substituem os beijos de despedida por um toque no sovaco alheio, esfregando o cheiro de quem vai embora por todo o corpo de quem fica.

Ou seja: beijo – como outros gestos – variam de acordo com as culturas e quando o Dalai Lama se envolve num escândalo por ter oferecido a língua para um menino beijar, o mundo vem abaixo. Era afeto ou sexo?

Há mesmo um costume tibetano de mostrar a língua como forma de cumprimento; diz a lenda que era para que monges se apresentassem em paz, diferentemente de Lang Darma, rei cruel que tinha a língua muito escura.

Nós, ocidentais, condenamos o Dalai Lama, até porque esta é uma época em que todo mundo dá palpite em qualquer assunto, sobretudo quando não se conhece nada dele. Não faltaram artigos de pessoas tidas como inteligentes, em dezenas de línguas, condenado a atitude do líder tibetano; não faltou que o defendesse, aproveitando para acusar o governo chinês de ter espalhado o fuxico.

Se o Dalai Lama está num local elevado, além dos prazeres sensoriais, eu não sei. Mas gestos – mais do que palavras – devem ser contextualizados para fazer sentido, porque variam de acordo com os povos.

Mostrar o punho cerrado com indicador e mindinho levantados pode ser uma saudação entre os fãs do rock pesado, mas são uma ofensa inominável para os italianos. No Brasil, apertar o lóbulo é sinal de aprovação, ainda mais quando acompanhado da expressão “da pontinha da orelha”; na Itália é – ou foi – um jeito de apontar uma pessoa homossexual.

Mover a cabeça para os lados significa não para os ocidentais; na Turquia e Bulgária é sinal positivo. Unir indicador é polegar formando um círculo e esticar os outros dedos é sinal de ‘ok’ para os estadunidenses; no Brasil, vem acompanhada de palavrão.

Para os brasileiros mostrar a língua era falta de educação. Albert Einstein deixou o órgão quase tão famoso quanto sua fórmula. Os Rolling Stones fizeram dela um símbolo. Por causa dela o Dalai, com perdão do trocadilho infame, acabou na lama.

Publicado no Correio Braziliense em 23 de abril de 2023

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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