Davi na berlinda

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É uma polêmica secular. Uma professora da Flórida foi afastada da escola por ter mostrado aos alunos uma ilustração com a estátua de Davi, de Michelângelo, que, como se sabe, aparece como veio ao mundo, todo exibido.

Ninguém sabe do que ele se orgulha tanto, porque o artista não o mostrou exatamente com um membrão, mas com o que se pode chamar de pintinho. Mas isso não vem ao caso; dizem até que tamanho não é documento.

O triste no caso é que tem gente que ainda discute isso; pais ficam chocados e protestam, confundem arte com pornografia e mantém uma polêmica inútil, ainda mais quando se está diante de uma incontestável obra-prima.

É também o caso de pinturas como O Nascimento de Vênus, de Botticelli, em que nem o fato de ela aparecer escondendo as chamadas partes pudentas serve de paliativo para as cabeças obtusas.

O bilauzinho de Davi já foi escondido, séculos atrás, por uma folha de figueira feita em metal, como forma de driblar a reação do clero, que se incomodava com a exposição. Mas isso foi há quatro séculos!

De lá para cá já passou muita água pelo leito do Arno, sob a ponte Vecchia – mas uma réplica do Davi que foi enviada como presente para a casta Rainha Vitória até muito pouco tempo ainda era protegida por uma tanguinha floral.

Não há o menor indício de que Michelângelo ou Botticelli quisessem chocar alguém. Ao contrário das provocações de artistas mais recentes – de Marcel Duchamp a Marc Quinn –, os renascentistas buscavam o belo como fundamento da arte.

Davi, no caso, é representado com pormenores anatômicos, pose desafiadora e olhos direcionados a Roma – foi instalada em frente ao Palazzo della Signoria, em Florença. É, antes de qualquer coisa, uma obra política, um desafio que os florentinos lançavam aos romanos, ao mostrar Davi se preparando para a batalha que venceria, contra o gigantesco Golias.

Mas nada disso importa a quem só tem olhos para o diminuto e comportado pipiu.

No Brasil temos mais sorte. Ninguém se importa com o Manequinho, estátua que fica no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, que mostra um menino fazendo xixi. Não chega a ser uma obra de arte; aliás, é uma contrafação, inspirada no Manneken Pis, que fica em Bruxelas, Bélgica, mas que hoje é tombada como patrimônio carioca. Os belgas também não se importam tanto com a genitália e nem ficam especulando se é exploração pedófila ver a estátua de Jeanneke Pis, uma menina urinando.

De toda a celeuma da professora afastada o que chama a atenção é a estupidez. Quanto mais informação está disponível, quanto menos esforço as pessoas precisam despender para se educar e compreender o mundo, mais a ignorância grassa. Não faz muito tempo vivemos o auge dos terraplanistas, que desafiavam as leis mais básicas da física e até a ações dos aventureiros que se lançaram a mar para dar volta ao mundo de navio, há cinco séculos.

Saudade dos tempos em que a maior discussão era o pomo de Adão.

Publicado no Correio Braziliense em 7 de maio de 2023

Paulo Pestana

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