O telefone toca e do outro lado da linha está um amigo que tem pinta de roqueiro, usa anel de roqueiro, é irmão de roqueiro e dança rock até com a cachorra. Mas ele queria falar de carnaval, assunto que eu imaginava estar longe das preocupações dele.
– Irmão, você consegue alguém que pode nos ajudar? A gente quer licença para que o nosso bloco de carnaval saia.
A um amigo não se nega nada. Respondi que iria mover algumas pedrinhas para ver se podia manter aquela chama foliã acesa, embora só acredito que ele saia no bloco se estiver vestido de Ozzy Osbourne. Deu certo: o bloco saiu. Sem Ozzy.
Mas meu problema é pensar. Ao invés de esquecer o assunto, aquilo ficou perturbando a cabeça. Eu sou de uma geração que bloco de sujo não pedia licença para ninguém, emporcalhava a rua de confete e serpentina, a gente abraçava as moças que queriam ser abraçadas – todas queriam – e, principalmente, saia sem pedir licença.
Esses bloquinhos organizados que a gente vê na rua eram uma bagunça só; e essa é a essência do carnaval. Se não tinha tambor, batia lata. Havia 362 dias sérios no ano, mas foram separados três dias de esbornia no calendário. Homem se vestia de mulher, mulher se vestia de homem, o adereço mais popular era uma chupeta e a maior transgressão era esguichar a água da bisnaga.
Um amigo vestia, todo ano, a mesma fantasia – a colegial que levou pau, inspirado no título de uma pornochanchada dos anos 1970, aqueles filmes que hoje poderiam ser exibidos na sessão da tarde sem maiores problemas. Com ele, os rapazes da quadra roubavam roupas das irmãs, punham pinga na mamadeira e saiam em frente.
Na primeira reunião para a criação da Sociedade Armonial Patafísica Rusticana – el Pacotão, um marco no carnaval da cidade no tempo do onça, o finado Cláudio Lysias propôs que o bloco saísse pela contramão na W3. Assim foi feito. Em pleno regime militar, ninguém se incomodou quando a turba cantava a plenos pulmões “que o Figueiredo já ficou gagá-gá-gá”.
O Pacotão insiste em sair. Não sei se pediu licença para a administração, o que seria uma afronta à memória dos pais fundadores que já nos deixaram – há poucos entre nós, quase todos gagás. O bloco do Lago Norte não desfila esse ano; a idade média dos foliões não permite sair, só dá para ficar.
Há quem reclame que o carnaval desorganiza a cidade, sem saber que é exatamente este o espírito da coisa. Folia é bagunça, orgia é esculhambação; carnaval é o desabafo dos comuns, uma multidão de bobos da corte xingando reis e séquitos. Para isso temos redes sociais, ainda que nenhum bloco de sujo tenha tanto palhaço.
Acabou. Hoje, me parece que se alguém jogar confetes vai levar uma multa; se assoviar para uma moça corre o risco de ser preso e se bater o bumbo muito forte pode ser processado por transgredir a lei do silêncio. Ainda assim, evoé!
Publicado no Correio Braziliense, em 3 de março de 2019
Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas,…
Pinheirinhos de plástico com algodão imitando neve, um velhinho barbudo de roupa vermelha, renas do…
A cidade está colorida de novo. Agora são as árvores de cambuís, que vestem as…
Rir é o melhor remédio, diz o bordão popular. Mas certamente isso não se aplica…
Chegara a vez do homem de chapéu. A pele clara e castigada pelo sol tinha…
E agora descobrimos que guardar segredos faz bem à saúde. As tais reservas – desde…