Como era doce a borracharia

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A tecnologia já resolveu um monte de problemas, mas alguns continuam a perturbar nosso juízo. Não é um absurdo pneu furar? Ex-leitor dos quadrinhos de Flash Gordon e Buck Rodgers (e só porque não publicam mais!), ex-telespectador de Os Jetsons, cheguei a sonhar que um dia viveria num mundo sem rodas. E, portanto, sem pneus furados.

Já tiraram a câmara de ar, selando o pneumático diretamente no aro, mas a borracha ainda é vulnerável a um prego de 10 centímetros que me obrigou a tirar o macaco e colocar mãos à obra. E também é impressionante como os macacos, desmentindo Darwin, não evoluíram – ao contrário, são mais complicados de operar do que seus antecessores.

Mas enquanto sujava as mãos e as calças num completo sem-jeito para colocar o estepe, uma estranha sensação de felicidade invadiu o cérebro como se tivesse sido atingido por uma overdose de serotonina e dopamina. Voltei uns bons anos e me lembrei da primeira vez que, ainda menino de calça curta, fui a uma borracharia.

Um espetáculo. Não aquele bando de marmanjos sujos de graxa, mas as paredes, forradas de calendários de todos os jeitos, com moças lindas em poses que eu não entendia bem, mas certamente gostava.  Quase todas estavam de biquíni, mostravam muito pouco além das curvas mais aparentes, mas que beleza…

Entorpecido pelas imagens do passado, fiquei até feliz de trocar o pneu e ter que leva-lo à borracharia. Como estariam as moças nos calendários atuais?

Não haviam de ser comportadas como as de antanho; como Rose di Primo, de biquíni, sentada numa motocicleta e provocando o voyeur – e quase me fazendo corar. São coisas que não cabem mais neste mundo explícito. Haveria de ser diferente.

A realidade, no entanto, era acachapante, irrefutável, cruel: os homens sujos de graxa continuavam ali, mas as paredes eram uma desolação completa. Tirante um pôster do Vasco, desbotado pela escassez de vitórias, só manchas e conversa fiada sobre a missão da empresa, quadrinhos com diplominhas e coisas sem importância. Foto que é bom nada. Mulher, só a moça do caixa.

Assuntei. O rapaz fez uma cara de espanto como se eu estivesse falando de um tempo e de um lugar que nunca existiram, uma Atlântida submersa, uma Kandor engarrafada. Ele mal sabia o que era uma folhinha e a última que tinha visto era de um político.

Não sosseguei e fui atrás. Melhor teria sido ficar quieto. Uma grande fábrica de pneus italiana ainda produz seus calendários anuais; mas quando desperdício! O mais recente, 2013, foi criado por Steve McCurry, fotógrafo norte-americano especializado em guerra.

O sujeito tinha Isabeli Fontana, Sonia Braga e Adriana Lima, entre outros espetáculos, diante da lente. Mas resolveu fazer arte. (Tem hora que a gente tem que odiar artista mesmo;  isso é hora de fazer arte?).

O resultado é que tive que ficar lá, esperar o sujeito mergulhar meu pneu no tanque, remendar, tirar o estepe e pagar. E sair na certeza que a minha infância era muito mais legal.

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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