Caras de pau

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Os caras de pau são fascinantes. São figuras destemidas; mas, ao contrário de muitos, ainda acho que não ter medo de nada é apenas o grau mais alto da escala da ignorância. Não sei onde inventaram que o destemor é uma virtude, embora acredite firmemente que a covardia é um dos piores defeitos do bípede humano.

Não tem nada a ver com coragem, que é a capacidade de enfrentar problemas. E não são simplesmente maus caráteres, mentirosos e egoístas, assim como não são somente pessoas que têm peito de se expor. São muito mais complexas, gente sem qualquer noção de ridículo, absolutamente despida de sensatez.

Alguns são simpáticos. Se aboletam ao lado da gente no balcão do bar e já puxam assunto, até chegar no tópico que os interessa: “Essa pinga que você está bebendo é boa?”. É a senha para pedir uma dose. Outros filam um cigarrinho.

Há quem exagere: fazem brincadeiras brutas, cantam mulheres e homens como se tivessem abolido o não do idioma, falam alto, e não se preocupam com o asco que causam nas pessoas.

Mas a maioria é de infratores. São mal-educados, furam fila, desprezam qualquer pessoa que esteja fora da própria pele. Não têm o menor interesse em saber o que os demais seres do universo pensam dele; pior, são amorais, desprezíveis, vis, prejudicam qualquer pessoa que estiver no caminho.

De uns tempos para cá é uma população que tem aumentado demais e a fascinação tem dado lugar à preocupação.    É só ver os tuítes do presidente Trump, a desfaçatez de ministros supremos que acham que podem fazer qualquer coisa com a Lei, a postura “não é comigo” de políticos pegos com a mão na botija dos maus feitos.

São exemplos que se refletem em todos os extratos da sociedade, quase como naquelas festinhas dos anos 70, quando alguém gritava “agora é vale tudo” , senha para a licenciosidade. A cara de pau tem influência imediata na falta de vergonha na cara; na ausência de civismo e de humanidade que a gente vê todo dia.

Me deparei com um desses desafios de rede social: aprenda a se tornar um cara de pau. É grave. Eles não apenas estão se reproduzindo, mas criando PhD. O teste é uma bobagem, deve fazer parte dessa estratégia de vender informações sobre as pessoas para depois tratá-las como gado tangido.

Ninguém precisa de uma sociedade de tímidos e retraídos, mas um pouco de bom senso e cautela, dizia vovó, é como canja de galinha: não fazem mal a ninguém.

Deu pra entender

Se houve alguma utilidade na recente troca de insultos entre os supremos doutores foi descobrir que eles também são capazes de falar em português. Deu pra entender tudinho. Até o que a gente não queria.

Me lembrei de ter ouvido: “Ou se morre como herói ou vive-se o bastante para se tornar o vilão” – a frase é de Harvey Dent, ex-promotor público do bem, que se transformou no Duas Caras, um dos mais terríveis inimigos do Batman.

Publicado no Correio Braziliense em 1 de abril de 2018

Paulo Pestana

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