Banquete proibido

Compartilhe

A notícia caiu como uma bomba na comunidade nordestina: mais de 100 pessoas já foram contaminadas com micose pulmonar, doença transmitida por um fungo que fica abaixo do solo. E, não, essas pessoas não estavam cavando em busca de água ou ouro; foram infectadas depois de comer tatu. Três morreram.

Já se sabia que tatu é um dos poucos animais – além do homem – a contrair lepra e por isso é tão estudado pelos cientistas, mas o bicho é um depósito de doenças, entre elas o mal de Chagas e a leishmaniose. E mais: caçar tatu é crime, mas no interior ninguém nunca ligou muito para a fiscalização do Ibama e prefere se arriscar a ir preso do que ficar sem iguaria.

Há subterfúgios. O primeiro é fazer cara de fome e tentar convencer o fiscal que é caso de subsistência, o que é previsto na Lei; mas aí precisa ser consumido em área rural – se for para a cidade, é cana certa. Outro é o jeitinho: quando um nordestino convidar para comer uma galinha cascuda é certo que não é um animal de pena, muito menos bípede.

São muitas as maneiras de se preparar um tatu, o que é dessas coisas bem brasileiras, que não se consegue explicar para um europeu: se não pode caçar ou comprar a carne, para que servem as receitas? De onde vem o peba (também conhecido como tatu-galinha) da panela?

Mas nada como um cochicho. Boca pequena, cinco pessoas foram convidadas para apreciar um tatu em pedações, assado na forma com legumes – mesmo quem fez cara de nojinho, foi. E não se arrependeu do pecadilho ocasional, ainda que procurando uma desculpa: foi um tatu só, não vai macular o meio ambiente, blá, blá, blá.

No dia seguinte, todos novamente reunidos, a conversa não podia ser outra, porque juntou a ceia proibida com a notícia da nova doença. Os cinco preocupados já tinham escarafunchado a internet em busca de informação, ainda mais depois de saber a procedência do tatu, que foi trazido do Piauí, onde a micose apareceu em 40 municípios. Ficamos sabendo até que um peba é capaz de comer nove mil insetos por dia.

Não havia médicos no recinto, mas não faltaram receitas, todas com uma dose de pinga – esse é o mal de quem frequenta boteco, acha que tudo se resolve com um goró, embora normalmente isso seja verdade. O único que não parecia preocupado era exatamente o responsável pela importação e preparo do peba. Ao contrário, Barros já maquinava uma forma de trazer mais um animal, já limpo e congelado.

E sob os olhares mais do que desconfiados do pessoal, dizia que iria experimentar uma receita que aprendeu ainda muito novo, o tatu cozido no leite de cocô e servido na própria carapaça. O Barros não tinha lido a notícia da micose ainda, mas quando foi informado deu de ombros. E lançou a teoria mais maluca dos últimos tempos: “Isso é conversa do pessoal do Ibama para ver se o pessoal para de comer tatu”.

Publicado no Correio Braziliense em 11 de janeiro de 2019

Paulo Pestana

Publicado por
Paulo Pestana

Posts recentes

A pressa e o tempo

Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas,…

3 meses atrás

Um Natal diferente

Pinheirinhos de plástico com algodão imitando neve, um velhinho barbudo de roupa vermelha, renas do…

3 meses atrás

O espírito nas árvores

A cidade está colorida de novo. Agora são as árvores de cambuís, que vestem as…

3 meses atrás

A graça de cada um

Rir é o melhor remédio, diz o bordão popular. Mas certamente isso não se aplica…

3 meses atrás

Destino tem nome

Chegara a vez do homem de chapéu. A pele clara e castigada pelo sol tinha…

3 meses atrás

A derrocada da fofoca

E agora descobrimos que guardar segredos faz bem à saúde. As tais reservas – desde…

5 meses atrás