Amores brutos

Compartilhe

Começo de namoro não é fácil para ninguém. Nem para passarinho, que tem que rebolar na dança do acasalamento, nem para cachorro, que fica naquela cheiração sem fim antes de consumar o fato. E muito menos para nós, seres humanos, obrigados a uma série de solenidades desde que descemos das árvores e deixamos de puxar as mulheres pelos cabelos.

Alguns trogloditas ainda andam entre nós, fazendo esforço para se equilibrar em apenas duas patas, mas esses nem sabem o que é namoro; confundem com ignorância e só a polícia dá jeito. Namoro é outra coisa.

E o nosso amigo sabe disso. Sensível como todo artista, estava abrindo as asas para iniciar o bailado do acasalamento com a recém conhecida e encantadora moça – mas já pensando na parte do cachorro; afinal é um homem, predador.

Mas agiu devagar, como faziam os cavalheiros de antigamente quando tiravam as armaduras, mas também porque durante a pandemia é bom esperar pelo menos 14 dias antes de tentar avançar o sinal. Se a moça não espirrar, pode-se ir em frente. Enquanto isso, nosso amigo fez o cerca-Lourenço com aquela conversinha tranquila, macia, hipnótica.

O Lourenço em questão foi um personagem famoso do Rio antigo, sócio de uma fábrica de sabão que não dava muito certo e que se tornou um centro de jogatina e malandragem. A polícia nunca conseguiu pegá-lo em flagrante graças a uma estratégica saída escondida que dava num açougue, enquanto os policiais gritavam: cerca o Lourenço.

Não se sabe se a polícia recolheu o Lourenço aos costumes, mas a expressão ficou, embora com o significado ligeiramente diferente: quem cerca-Lourenço, não foge, mas dá voltas sem chegar ao objetivo. E o objetivo do nosso amigo era não deixar a presa escapar.

Levava para o parque, para tomar um café, um almoço; ia afiando o discurso, colocando palavras mais insinuantes, situações mais picantes, esperando o tempo passar para ver se a moça tossia. Enquanto isso, trocavam detalhes da vida.

Ele contou do apartamento com suas obras espalhadas pelos cantos, dos desejos e conquistas, com aquela fala mansa dos vitoriosos; e soube que ela morava num pequeníssimo flat, na companhia de um cachorro. A moça não tossiu, nem espirrou; a barra estava limpa e um dia o convidou para conhecer o apartamento.

Já estava mais do que na hora. A pandemia tem atrasado tudo na vida da gente, mas os dias continuam correndo do mesmo jeito, e ele não via a hora de conhecer a moça, biblicamente falando. Tomou banho, se vestiu com algum esmero e engatou a primeira.

Foi recebido na porta do flat pelo cachorro. Mas não esperava que fosse um pitbull. “Quem cria um cachorro deste tamanho num flatizinho desses?”, pensou. “Ele é um amor”, disse ela. Podia até ser, mas o bicho tinha atitude de pai de donzela; não tirava os olhos do casal e na primeira investida, rosnou. Na segunda, latiu. Nosso amigo parou por aí. Preferiu não arriscar uma terceira arremetida e voltou para casa; frustrado, teso, mas incólume.

Publicado no Correio Braziliense em 6 de junho de 2021

Paulo Pestana

Publicado por
Paulo Pestana

Posts recentes

A pressa e o tempo

Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas,…

10 meses atrás

Um Natal diferente

Pinheirinhos de plástico com algodão imitando neve, um velhinho barbudo de roupa vermelha, renas do…

10 meses atrás

O espírito nas árvores

A cidade está colorida de novo. Agora são as árvores de cambuís, que vestem as…

10 meses atrás

A graça de cada um

Rir é o melhor remédio, diz o bordão popular. Mas certamente isso não se aplica…

10 meses atrás

Destino tem nome

Chegara a vez do homem de chapéu. A pele clara e castigada pelo sol tinha…

10 meses atrás

A derrocada da fofoca

E agora descobrimos que guardar segredos faz bem à saúde. As tais reservas – desde…

11 meses atrás