Amizades em risco

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Mario Quintana disse que a amizade é o amor que nunca morre. É uma frase que serve para mostrar que até os poetas erram. Amizades estão sendo rompidas a todo momento por desrespeito a uma das regras basilares do sentimento, o respeito às diferenças.

Há pouco, amigos de décadas deixaram se se falar e de frequentar o mesmo boteco por discordâncias políticas; não é caso isolado, ao contrário.

Mas a situação fica ainda mais grave quando também falha uma instituição brasileira: a turma do deixa-disso. Aproveitando a ausência dos dois beligerantes, a mesa começou a discutir, inicialmente em tom de lamento, o rompimento dos camaradas, mas logo alguém deu razão para um, enquanto outro justificava a ação do segundo.

Antes que a discussão ficasse acalorada demais, um sensato falou mais alto:

–  Amigo meu não tem defeito – é o princípio de Blaise Pascal: “o amor é cego, a amizade fecha os olhos”.

Os presentes entenderam o recado. Eu mesmo disse que não tinha mais idade nem para fazer amigos novos, nem para perder os velhos. É uma meia-verdade, até porque tenho feito bons amigos. Mas o fato é que amigo não é coisa de se perder, até porque nem a fé e os pulinhos para São Longuinho ajudam a reencontrar.

O filme Os Banshees de Inisherin – que esteve na disputa do Oscar – mostra a dor e a irracionalidade do rompimento de uma amizade, usando a Guerra Civil Irlandesa como pano de fundo para a frustração de Colm, que decide deixar de falar com o velho amigo Pádraic.

O filme, à parte o monumental trabalho dos atores, é cheio de defeitos, mas isso não vem ao caso. O que interessa é a relação entre os personagens.

Músico, Pádriac culpa o amigo pela própria insignificância, chega a dizer que as horas de conversa fiada no pub local o impedem de evoluir intelectualmente e de cumprir o desejo de deixar uma marca no mundo por meio de suas canções.

Por puro interesse pessoal, ele não quer mais perder tempo com uma companhia que não ajuda seu objetivo – e diz isso com todas as letras. Ainda que a custo da amizade.

A radicalização, como na guerra que dividiu o país entre católicos e protestantes, deixando marcas que duram até hoje, chega às raias do absurdo, terminando com uma automutilação que, ao cabo, impede Colm de completar o desejo de fazer algo relevante na música e, consequentemente, na vida – e desta forma poder culpar definitivamente o ex-amigo pela frustração pessoal.

Ainda não chegamos ao ponto de decepar os dedos, mas a guerra está entre nós com o fanatismo de religiosos radicais. As conversas continuam corrosivas, desafiadoras, ao ponto de determinados assuntos – política, principalmente – fiquem proibidos pelo bem de uma convivência mais harmônica, mas seguramente mais falsa.

Aristóteles disse que a amizade pode existir entre as pessoas mais desiguais, porque às torna iguais. O problema é que ninguém mais quer ser igual a ninguém; há uma necessidade de buscar uma marca pessoal em tudo. Ainda que seja uma marca de estupidez e custe um bem tão precioso quanto a amizade.

Publicado no Correio Braziliense em 19 de março de 2023

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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