Não se sabe quando o homo sapiens ou seus antecessores deixaram de olhar os cachorros ou os canídeos que vieram antes com desejos de churrasco. Mas a progressão do sentimento entre homens e animais domesticados superou a necessidade básica da fome e instalou-se no campo psicológico; uma epopeia que chegou ao lulu de madame.
Só que, como tudo que vem acontecendo nesses tempos esquisitos em que vivemos, o negócio chegou às raias do absurdo. Está ficando difícil saber quem é dono de quem. Daqui a pouco veremos humanos sendo levados na coleira.
Dia desses quem circulava pelo Parque da Cidade podia ver uma barulhenta turba envolvida num furdunço. Era um concurso de beleza para escolher o cachorrinho mais guapo e, tal e qual as antigas contendas de miss – quando as mães eram um espetáculo à parte –, não se sabia quem estava mais histérico, se os donos dos bichos ou os quadrúpedes propriamente ditos.
Sei que estarei sendo linchado por chamar de donos o que o pessoal dos punhos de renda denomina como tutores. Eles argumentam que animais não podem ser propriedade. Eu não argumento nada porque não discuto com esse tipo de gente. E, sim, gosto de cachorro, gatos e passarinhos; trato todos muito bem, mas cada um no seu lugar.
Mas tinha o concurso. Barracas montadas, cadeiras com um júri composto, uma passarela de uns 10 metros e muitos cachorros de raças pequenas; a maioria delas insuportáveis por causa do ciúme do dono e principalmente pelo latido estridente. Mas o destaque eram os, vamos lá, tutores.
Por eles, é possível entender porque esses cachorrinhos são tão mal-educados. Uma senhora já passada da idade média discutia ferozmente com uma moçoila por causa de algum problema na inscrição, e aqui o velho repórter se penitencia: não me interessava o motivo, só a reação furiosa e o motivo fútil que a provocou. A chamada via de fato não ocorreu por causa da turma do deixa-disso.
O concurso seguiu, um peludinho com fitinhas na cabeça ganhou a primeira etapa e a festa foi épica. Mas quem parecia ter sido escolhido o mais belo era o dono, que recebia efusivos parabéns e alguns olhares de inveja. Mas nem tudo é felicidade nessa relação.
Dois grandes amigos perderam seus cachorros recentemente. Um deles foi atropelado depois de fugir de casa; chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos. A consternação foi grande, mas o dono lidou com o luto da forma mais tradicional: conseguiu outro cachorro, um vira-latas simpático encontrado na rua, perdido e recolhido por um sobrinho.
O outro caso é mais complicado. Depois de uma convivência de mais de década, um câncer levou o amigo fiel que tinha nome de gente e, segundo o dono, era melhor que muita gente. A saudade é tão grande que meu amigo não consegue se separar do velho companheiro que, transformado em pó por uma cremação, continua na sala, guardado em um vaso. Há quem diga que de vez em quando late.
Publicado no Correio Braziliense em 12 de dezembro de 2021
Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas,…
Pinheirinhos de plástico com algodão imitando neve, um velhinho barbudo de roupa vermelha, renas do…
A cidade está colorida de novo. Agora são as árvores de cambuís, que vestem as…
Rir é o melhor remédio, diz o bordão popular. Mas certamente isso não se aplica…
Chegara a vez do homem de chapéu. A pele clara e castigada pelo sol tinha…
E agora descobrimos que guardar segredos faz bem à saúde. As tais reservas – desde…