A ofensa grave

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Nosso amigo quase foi parar na delegacia na semana que antecedeu o carnaval. A mocinha invocou-se com o olhar dele – uma silenciosa contemplação seguida da baba grossa que pende do lado da boca – enquanto ela passava faceira. Ele não disse nada, embora falasse com o olhar bovino, mas a moça chamou o segurança do shopping.

O rapaz chegou meio sem jeito e perguntou se ele estava admoestando a moça – ele provavelmente não conhece o verbo admoestar, deve ter usado outro, mas o amigo não lembra bem. Continuou sentado, tomando um expresso e com uma cestinha de pães de queijo à frente, negando qualquer investida, mas com pensamento explícito – “Bem que eu queria”.

A mocinha acompanhava o jovem segurança e falava sem parar, acusando nosso pacato amigo de todo tipo de assédio e, depois de confirmar que ele não tinha dito nada nem encostado nela, disse que se sentiu constrangida com o olhar. O rapaz não sabia o que fazer e falou que ia chamar a polícia para decidir, quando meu amigo se levantou.

Claro que já tinha um bolinho de gente espiando a confusão. Ele ia dizer que olhar não tira pedaço, mas ficou em silêncio; imediatamente, pegou o guarda-chuva e foi embora para nunca mais voltar naquele shopping center. Abaixou a cabeça e ficou imaginando uma algazarra o seguindo. Não aconteceu. Só voltou ao assunto com os amigos, no bar.

Essa conversa de empoderamento feminino já está acabando com a paz no botequim. Ainda sob o efeito da ameaça tão próxima, apareceu a notícia de que a Fórmula Um vai acabar com as garotas que ficam flanando na pista antes da corrida, fazendo não sei o quê, mas sem dúvida enfeitando aquela macheza com cheiro de gasolina.

As neo-feministas comemoraram o fim de mais uma coisificação da mulher. Nós lamentamos menos uma atração naquela chatura que é ficar vendo carro dando voltinha, ouvindo a discussão dos comentaristas para saber se o finlandês é melhor que o inglês.

Já é a segunda vez que eles tentam tirar as meninas. Na primeira, alguns anos atrás, em Mônaco, colocaram rapazes. Não agradou a ninguém. Desta vez é oficial; e vamos ter que adivinhar como se chamam os pilotos, pois a função principal delas era segurar uma plaquinha ao lado deles, com o nome de cada um.

Mais um pouco vão abolir também as mocinhas que ficam dando voltinha nos ringues com a placa que informa o número do próximo round. E vamos ter que nos contentar com dois marmanjos se esbofeteando ou se agarrando, suados, imaginando a catinga que deve estar por ali.

O fato é que apreciar a beleza feminina virou ofensa grave e passível de punição. Já tenho um amigo que só sai de óculos escuros para se defender de acusação de assédio. Mas o Faixa foi mais prevenido. Chegando no trabalho, disse para todo mundo ouvir:

– Quero deixar claro que eu acho todo mundo que trabalha aqui, homem ou mulher, muito feio. Não quero pegar ninguém.

Acha que está protegido.

Paulo Pestana

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