Só mesmo nesse Brasil conflagrado é que cantar o Hino Nacional vira polêmica. No resto do mundo há orgulham pela música que une o povo; canta-se com fervor, contrição, postura de respeito.
Aqui, é preciso que haja uma Lei para determinar que o hino deve ser cantado pelo menos uma vez por semana nas escolas, antes dos jogos de futebol ou em solenidades oficiais. Do contrário, alguém iria puxar um sambinha ou, pior, um funk.
Não bastasse a idiotice de propostas como acabar com a segunda parte da música ou até mesmo escolher um novo Hino Nacional, agora virou problema educacional. Deputados oportunistas condenam a execução do Hino, não por alguma convicção, mas precisamente pela falta delas. E assim segue a saga brasileira, com imbecis de todos os partidos disputando o protagonismo.
Há alguns anos, o poeta Reynaldo Jardim e o maestro Jorge Antunes criaram um Hino Nacional Alternativo; era uma proposta contracultural, mais para fazer pensar do que para ser levada a cabo. Era um hino esquisitão, antinacionalista, enumerando desgraças e infortúnios, uma espécie de música de protesto fora de festival – quase na linha da anticandidatura que Ulysses Guimarães lançara anos antes para enfrentar o regime militar.
Diz a letra: “Da paisagem ferida/ Da criança lesada/ Da mulher soluçando/ Homem triste na estrada/ Dessa terra traída”. Ou seja, ao invés de enfrentar inimigos externos, como praticamente todos os hinos nacionais, o poema mira em questões sociais. Ninguém deu muita bola para a falseta, nem os compositores, que nunca o gravaram; ficou o final iconoclasta: “Há de o povo cantar/ O Brasil renasceu/ Nossa pátria é você/ Minha pátria sou eu”.
Carlos Drummond de Andrade também fez seu Hino Nacional, um poema: “Precisamos louvar o Brasil/ Não é só um país sem igual/ Nossas revoluções são bem maiores/ Do que quaisquer outras; nossos erros também/ E nossas virtude? A terra das sublimes paixões… / Os Amazonas inenarráveis… os incríveis João Pessoas”.
Hinos são normalmente chamamentos à guerra ou loas nacionalistas; alguns são explícitos e belicosos, como o português, o chinês e o francês; outros se protegem em metáforas como o norte-americano, o russo e o britânico; alguns nem letra têm, caso do espanhol e o bósnio. Já o hino brasileiro é cheio de belas imagens.
Obtusos se incomodam com o caráter parnasiano da letra, sem saber que os parnasianos surgiram em contraposição aos românticos, trazendo positivismo e ciência para a poesia do século XIX. Mesmo quando acende à batalha – “Veras que um filho teu não foge à luta” – abre espaço para o orgulho bucólico – “teus risonhos lindos campos têm mais flores”.
Mas se a letra provoca polêmica, a música de Francisco Manuel da Silva é um primor a partir da protofonia orgulhosa. O hino brasileiro está sempre entre os primeiros em qualquer desses rankings que apontam os mais belos do mundo. Ou seja, mesmo se não por patriotismo, o nosso hino merece ser ouvido e cantado por sua beleza.
O Brasil tem muitos problemas. O hino não é um deles.
Publicado no Correio Braziliense, em 10 de março de 2019
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